Como a Cultura de Segurança de Alimentos pode trazer melhorias para as indústrias

A maior problemática ao redor do mundo atual em relação a disponibilidade de alimentos está pautada em duas premissas básicas: a segurança alimentar e a segurança de alimentos. Segurança alimentar está relacionada a capacidade de produção, distribuição e acesso de alimentos a todos. Relaciona-se a erradicação da fome e a distribuição de nutrientes de origem alimentar de forma adequada a todos os povos. Já a segurança de alimentos, está alinhada ao conceito do alimento seguro para consumo. Um alimento inócuo, livre de contaminantes e que não cause nenhum tipo de dano a quem o consumir. Ambas coexistem, principalmente quando se considera que o acesso ao alimento não é o bastante para garantir saúde a população mundial. O alimento e a água devem chegar próprios para consumo.

Segundo o Ministério da Saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a cada ano uma a cada dez pessoas adoecerão por doenças transmitidas por alimentos (DTA), e podem haver cerca de quatrocentos e vinte mil mortes por ano devido a ingestão de alimentos ou água contaminados. De acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), estima-se que um a cada seis norte-americanos adoecem por DTAs nos Estados Unidos e são reportados aproximadamente três mil óbitos ao ano por este tipo de infecção. No Brasil, são notificados em média setecentos surtos por DTA ao ano e cerca de dez óbitos em função desde tipo de infecção. Os indicadores acompanhados pelos diversos organismos de saúde ao redor do mundo, refletem uma preocupação latente a respeito de como controlar este tipo de infecção e como garantir o consumo de alimentos seguros. A subnotificação dos casos de surtos alimentares é uma grande preocupação e por isto debate-se tanto uma cultura de segurança de alimentos nos processos de manipulação. Estudar e compreender como se dão estes tipos de contaminação dos alimentos e água podem nos suportar na construção de uma nova visão sobre a produção de alimentos e a internalização das práticas necessárias para uma manipulação inócua. 

De acordo com os dados do Sinan/SVS/Ministério da Saúde de maio de 2019, os principais locais de ocorrência de surtos alimentares entre os anos de 2000 e 2018, são as residências, o que ressalta que a manipulação inadequada de alimentos começa em casa (gráfico 1). O cenário brasileiro evoca uma necessidade de melhoria da educação do brasileiro no que tange a manipulação de alimentos e também de saneamento básico e acesso às práticas disponíveis para o tratamento da água para consumo (gráfico 2).

Gráfico 1 – Locais de ocorrência de Doenças transmitidas por alimentos (Fonte de dados: Informa 2018 – Surtos de Doenças transmitidas por alimentos no Brasil, Ministério da Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde)

Gráfico 2 – Tipos de alimentos contaminados (Fonte de dados: Informa 2018 – Surtos de Doenças transmitidas por alimentos no Brasil, Ministério da Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde)

¹ excluídos os registros de ignorado, inconsistente e inconclusivo (Nº de casos excluídos: 4.499)

A partir dos dados de surtos alimentares foram determinadas a etiologia de 2.030 surtos entre os anos de 2009 e 2018 e os agentes mais identificados estão identificados no gráfico 3.

Gráfico 3 – 10 principais agentes etiológicos de contaminação (Fonte de dados: Informa 2018 – Surtos de Doenças transmitidas por alimentos no Brasil, Ministério da Saúde – Secretaria de Vigilância em Saúde)

Com base nos dados apresentados, é possível realizar um paralelo entre os principais contaminantes e sua forma de contaminação para entendermos como a cultura de segurança de alimentos (CSA) é capaz de mitigar ou ao menos auxiliar na redução do risco de surtos alimentares:

1 Tabela 1 – correlação entre os principais agentes contaminantes e suas fontes de contaminação. (Fonte: Forsythe, Stephen J. Microbiologia da Segurança dos Alimentos. Disponível em: Minha Biblioteca, (2nd edição). Grupo A, 2013.)

A importância da Segurança de alimentos, vem sendo muito debatida ao longo dos anos e cada vez mais as empresas tem tomado consciência sobre este tema. Os diversos riscos associados a comercialização, preparo e/ou industrialização de alimentos tem sido uma preocupação constante, principalmente com o advento das redes sociais, acesso a informações – principalmente informações que “viralizam” rapidamente. Este tipo de situação, pode acabar com uma marca ou uma empresa. Portanto, há uma responsabilização maior enquanto as boas práticas de segurança e higiene dos alimentos. Além disso, existem legislações especificas que devem ser observadas por estabelecimentos industriais e comerciais para o cumprimento às boas práticas, que, inclusive, exigem a realização inspeções periódicas para garantir as condições de higiene dos ambientes produtivos ou comercializadores. Estas práticas de inspeções vêm sendo realizada por anos e não é possível verificar uma evolução em relação ao comportamento das equipes atuantes de maneira que seja possível garantir a eliminação das falhas comportamentais, nem mesmo estabelecer um paralelo claro entre os resultados das inspeções – podem ser impecáveis em alguns locais – e a possibilidade de ocorrência de um surto alimentar. 

Com a premissa que os problemas de Segurança de alimentos são parcialmente causados por questões comportamentais, nas abordagens atuais para CSA é feita uma tentativa para reduzir os riscos de doenças transmitidas por alimentos, integrando o sistema de gestão da segurança de alimentos com os valores, crenças e comportamentos da força de trabalho. (Griffith et al., 2010 apud Tomei & Russo, 2019).

As práticas comumente utilizadas até os dias atuais, consideram pouco as características sociais e comportamentais de seus colaboradores. Apenas exige-se o cumprimento dos requisitos, fazendo ameaças com a presença de auditores, inspeções periódicas ou dos órgãos públicos da vigilância sanitária. Mas nenhuma evolução poderá ocorrer a partir desses contextos. Os colaboradores e manipuladores de alimentos não podem ter tratados como robôs que apenas cumprem o que lhes é ordenado; principalmente em se tratando da ciência dos alimentos. É necessário compreender o que se faz e porquê se faz, a importância do seu trabalho e as implicações de não cumprir com os requisitos que lhes são propostos. Garantir a segurança dos alimentos, não é uma atividade apenas sobre a cultura organizacional, mas também trabalhar a cultura de cada indivíduo. A partir do momento que estas pessoas compreendem a importância de manter o ambiente em condições higiênicas adequadas e levam isto para suas casas, ensinam a importância destas questões para seus filhos, atingimos o ápice do que é a cultura de segurança de alimentos. Somos capazes de auxiliar a internalização de um conhecimento, que a partir dali será perpetuado, criando uma cultura. Segundo Yiannas (2009), “alcançar o sucesso em segurança de alimentos requer mais do que um entendimento completo sobre a ciência dos alimentos. Requer uma melhor integração entre a ciência dos alimentos e a ciência do comportamento”, isto quer dizer que precisamos entender com quem estamos lidando naquele local, os valores, atitudes, competências, padrões de comportamento individuais e do grupo (Yiannas, 2009 apud Health and Safety Commission, 1993). Porém, apesar de todos desafios necessários para desenvolver e uma cultura fortificada, é incontestável o papel da liderança no processo. 

Quando as organizações reconhecem a importância da CSA para seu negócio, torna-se um valor para a empresa, no entanto, implementar e fortalecer cultura é uma escolha. Uma vez assumido esse papel, deve-se implementar mecanismos de propagação desse valor para todos colaboradores e stakeholders. O processo de implementação da CSA só começa a ocorrer a partir do momento que as lideranças assumem seu papel de influenciar pessoas (apesar de tratar principalmente sobre níveis hierárquicos organizacionais, é importante ressaltar que qualquer pessoa é capaz de exercer um papel de liderança sobre outra) e é compreender como essa influência pode promover a fortificação e consolidação da CSA.

Todo o processo começa com acreditar em CSA. Quando os líderes acreditam nestes valores, inspirar e influenciar seus colaboradores passa a ser uma prática natural. Líderes capazes de ouvir e dialogar sobre as diversas questões, inclusive sobre segurança de alimentos, facilita a propagação da cultura. Os colaboradores se sentirão constrangidos em não atuar da forma correta e esperada. E consequentemente a evolução em cultura começa a ocorrer e a se relacionar com os demais processos de gestão. No entanto, ser um líder carrega em si, o peso de ser alguém em que outros se espelham. As atitudes esperadas são mais absorvidas através da observação, que através do ensino tradicional. Quando os lideres possuem um discurso arrojado e alinhado com os valores de segurança de alimentos, porém isto não se reflete em atos, automaticamente o que prevalecerá será a atitude incoerente e desalinhada ao seu discurso. As pessoas observam imediatamente que aquele valor que tanto é propagado e exigido, não passa de uma falácia, e retornamos ao ponto inicial. A liderança pelo exemplo é ponto chave deste diálogo, por isto, é fundamental auxiliar a gestão a compreender o que é CSA, ensiná-los o valor para o negócio e motiva-los para exercer o que está sendo proposto não apenas da boca pra fora, e então, efetivamente, o processo de uma implementação de cultura de segurança de alimentos poderá ser conduzido.

Educação e comunicação como ferramentas para desenvolver uma CSA 

Quando tratamos sobre cultura, logo aparece a necessidade de ensinar as pessoas sobre o que é cultura e como praticar cultura. No entanto, não estamos falando sobre como executar um procedimento. Ter uma cultura implementada e estabelecida não se limita  a ter, por exemplo, uma área de manipulação de alimentos limpa e em condições sanitárias. A cultura tratará do porquê aquela área está ou é mantida naquelas condições. 

De nada adianta falar sobre cultura quando incentivamos que as coisas sejam feitas porque haverá inspeções periódicas, auditorias ou visita de acionistas, etc.. As condições devem ser mantidas porque a pessoas compreendem que tal atitude é a correta e esperada. Para isto, treinamentos convencionais nem sempre serão a melhor saída para desenvolver uma cultura. Cultura está ligada a conexão e não é apenas falando o que e como deve ser feito que iremos atingir um resultado positivo. Primeiramente, as pessoas precisam entender por que tais práticas precisam ser executadas, no entanto, há uma linha tênue para alcançar o equilíbrio – se tratarmos isso de forma superficial, cairemos no mesmo erro, porém, se aprofundarmos demais, de forma técnica e conceitual, traremos apenas um monte de informações maçantes, que não serão plenamente compreendidas e não permitirá a conexão necessária com o pessoal operacional. O fundamental é faze-los compreender que existem riscos e consequências reais em não cumprir com as regras que são propostas. É necessário dar destaque a gravidade e a consequências associadas com o não cumprimento de determinada prática (Yiannas, 2009). 

Manipuladores de alimentos recebem inúmeros treinamentos ao ano, dos mais variados temas, se ainda assim não é possível observar o resultado esperado, é o momento de repensar a forma de trabalhar o conhecimento. O processo de educação organizacional, deve considerar, primordialmente a forma de comunicar e o que é necessário comunicar. Adultos aprendem de formas diferentes e a necessidade de ser objetivo e eficaz no processo educacional é onde pode-se obter sucesso na promoção de cultura através de capacitação interna.  

Apesar da importância fundamental do treinamento, a comunicação de maneira geral é crucial para CSA. É importante definir expectativas claras e objetivas para que as pessoas compreendam o que se espera delas enquanto parte do organismo, utilizando todos os meios possíveis para que as comunicações sejam relevantes, interessantes, de fácil compreensão e gerem conexão com as pessoas fazendo desta, uma via de mão dupla no processo de implementação da CSA. Para isto, é fundamental que os gestores compreendam sua participação no processo de comunicação, que deve ser aberta e efetiva. A gestão necessita aprender a comunicar o que precisa ser feito, quais os resultados esperados e as consequências da não execução estabelecendo uma política de consequências, educando as pessoas que não agir corretamente trará resultados, que podem ser desastrosos, para a companhia, para o indivíduo e sua carreira. 

 

Referências: 

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