Adulterações na cadeia produtiva do pescado: uma realidade mundial

Um problema mundial e brasileiro

O pescado é uma matéria-prima de grande importância nutricional e apresenta-se como um dos produtos de origem animal com elevado crescimento mundial e brasileiro em relação à sua produção e consumo, segundo dados disponibilizados nos últimos anos (FAO, 2020; PEIXEBR, 2020).

Porém, a ocorrência de adulterações econômicas é uma realidade comumente observada na cadeia produtiva do produto, facilitada pela grande quantidade e diversidade de espécies. A prática gera impactos ambientais negativos e eventuais danos à saúde do consumidor, além de enganar o mesmo, uma vez que a proposta do ato, geralmente, é o lucro econômico, principalmente pela substituição de espécies, com a comercialização de produto de valor inferior de mercado, além de atribuir qualidades e requisitos que não possui.

A comercialização de alimentos adulterados, inclusive o pescado, é sujeita à sanções penais, como a apreensão do produto, aplicação de multa, entre outros, baseadas principalmente nos seguintes documentos legais: o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 (BRASIL, 1940), que trata do Código Penal Brasileiro, a Lei nº 8.078, de 1990 (BRASIL, 1990), que dispõe sobre o Código de Defesa do Consumidor, assim como os Decretos no 9.013, de 2017 (BRASIL, 2017a) e no 10.468, de 2020 (BRASIL, 2020a), que constituem o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA).

Apesar das penalidades aplicadas, o fato é relatado em todo mundo e os casos são facilmente descritos em literatura científica. Em estudo realizado em 2018 nos Estados Unidos, por exemplo, com análise de amostras de mais de 270 restaurantes e mercados de pescado de 24 estados, relatou-se falsificação por substituição de espécie em 21% das amostras coletadas, em um a cada três estabelecimentos visitados. A prevalência das adulterações observadas foi principalmente com espécies de alto valor comercial, como robalo, pargo, halibute, linguado, oferecendo ao consumidor um produto diferente do realmente era comercializado, geralmente de menor valor econômico (WARNER et al., 2019). No Canadá, entre 2017 e 2019, foram analisadas mais de 400 amostras de pescado coletadas em mercados varejistas e restaurantes, observando falsificação de espécies em 47% destas (THURSTON; WILMOT, 2019).

Em 2020, a Operação não detectou nenhuma análise fora do padrão no pescado importado, e observou que também cerca de 95% dos produtos nacionais com SIF estavam em conformidade, o melhor resultado desde o início da Operação. A coleta também se deu em estabelecimentos sob o SIE, onde 38,7% das amostras foram consideradas não conformes (BRASIL, 2021).

Outro exemplo interessante e atual foi citado em estudo com cem amostras de produtos de pescado originários de 20 países e vendidos por uma das maiores empresas de comércio eletrônico da China, onde a fraude novamente se repetiu. Apenas 25% das amostras estavam de acordo com as descrições obtidas na página da “internet” e no rótulo do produto recebido, e a falsificação de troca de espécies foi constatada em 35% das amostras (XIONG et al., 2020).

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No Brasil, também observa-se o quadro com frequência há tempos. Lima e Mesquita (1996), por exemplo, em avaliação das falsificações mais comuns no comércio varejista de pescado do Estado do Rio de Janeiro, apontaram que, além de facilmente observadas, mais de 70% destas eram por substituição de espécie. Oliveira, Nunes e Cordeiro (2017), avaliaram 12 estabelecimentos com comercialização de peixe fresco, incluindo supermercados e barracas de feira em Castanhal, Pará. Os autores observaram que peixes como tambaqui, surubim, pargo e pescada amarela eram substituídos com frequência por outros de menor valor comercial. Já Silva e Alves (2020), em estudo com rótulos de pescado congelado de uma rede de hipermercados em Joinville/SC, observaram incorformidades nas informações técnicas e na qualidade do rótulo em cerca de 8 a 10% das amostras.

Para combate ao problema em âmbito nacional, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), promove desde 2015 a Operação “Semana Santa”, com o objetivo da verificação e detecção das adulterações, principalmente por substituição de espécies de qualidade inferior, por meio da coleta de amostras de pescado nacionais e importados nos estados brasileiros e Distrito Federal. Em 2020 a Operação não detectou nenhuma análise fora do padrão no pescado importado, e observou que também mais de 95% dos produtos nacionais estavam em conformidade, o melhor resultado desde o início da Operação. A coleta também se deu em estabelecimentos sob o SIE, onde 38,7% das amostras foram consideradas não conformes (GOVBR, 2020).

Operação Semana Santa 2020

Tipos mais comuns de adulterações no pescado

É importante citar que, segundo o RIISPOA (BRASIL, 2020), os produtos de origem animal podem ser considerados alterados ou adulterados quando não em conformidade. Os produtos alterados são aqueles não apresentam condições higiênico-sanitárias adequadas para consumo, podendo trazer agravos à saúde coletiva. Já nos adulterados, a alteração ocorre geralmente por má fé, visando o lucro econômico, e distinguem-se entre produtos fraudados e falsificados. Apesar disso, nota-se mais comumente na prática do dia-a-dia o uso do termo fraude para definir os diferentes atos de adulteração dentro da cadeia do pescado, como utilizado no título do presente artigo para maior impacto junto aos leitores.

Na literatura científica, são descritas as mais diferentes formas de adulteração em pescado e derivados, desde aletrações mais grosseiras, de percepção mais fácil, até as mais similares aos produtos originais, de difícil identificação. Exemplos observados são as falsificações por substituição de espécies; a subtração dos caracteres sensoriais do produto, como alguns cortes aplicados no camarão, na lula e em peixes espalmados (FIGURA 01), o que dificulta a análise do frescor destes; há também os os erros de rotulagem, e a adição de água em excesso, seja por técnicas inadequadas no processo de glaciamento ou pelo uso indevido de aditivos e/ou coadjuvantes de tecnologia, como os fosfatos; além de outros aditivos, como sulfitos em camarões e lagostas fora do permitido da legislação brasileira vigente.

FIGURA 01: Subtração dos caracteres sensoriais da lula, o que dificulta a avaliação do frescor do produto.

Entre as falsificações na cadeia do pescado, uma das mais comumente observadas é a troca de espécies, onde ocorre a comercialização de peixes de baixo valor comercial em substituição daqueles de maior valor. A prática ocorre no pescado inteiro ou em cortes, e é facilitada pela diversidade de espécies existentes na cadeia produtiva, muitas vezes semelhantes entre si, somado ao desconhecimento destas por grande parte da população. Alguns exemplos que pude observar na prática do dia-a-dia:

Fig. 02: Sardinha comercializada no formato espalmado, o que facilita a substituição de espécies e venda de produto com qualidade inferior

Fig. 03: Funcionário de peixaria apresentando os dois filés: de Linguado, à direita da foto, e de Tamboril, um dos peixes utilizados como fraude, à esquerda.

Na literatura, observam-se estudos sobre a temática. Como exemplo, Staffen e colaboradores (2017), em análise de peixes comercializados em restaurantes japoneses e peixarias de Florianópolis, observaram a falsificação de espécies em 30% das amostras das pescarias e em 26% dos restaurantes.

Reportagem sobre como identificar os tipos de peixe e não ser enganado

Para diferenciação das espécies, é importante conhecimento anatômico dos animais, como o formato e posição da cabeça, nadadeiras, coloração, entre outros, quando comercializados de forma inteira ou inteira eviscerada. Nos filés, observa-se pela conformação dos miômeros e mioseptos na musculatura do peixe, e presença ou não do perimísio.

E, como auxílio para a cadeia, o MAPA, em 2016, lançou um material de consulta para uso como instrumento na identificação de espécies de peixes, o “Manual de Inspeção para Identificação de Espécies de Peixes e Valores Indicativos de Substituições em Produtos da Pesca e Aquicultura” (BRASIL, 2016). Porém, para confirmação das espécies sem as caracteríscas morfológicas, é indicado realizar métodos moleculares, como a Reação em Cadeia de Polimerase (PCR) e sequenciamento. Também, é fundamental o conhecimento da Instrução Normativa no 53, de 2020 (BRASIL, 2020b), que define o nome comum e respectivos nomes científicos para as principais espécies de peixes de interesse comercial destinados ao mercado nacional.

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Já no produto congelado, além da substituição de espécies, pode-se citar a fraude por adição de água em excesso ao peso do produto final. Este ato pode ocorrer no processo de glaciamento, processo padronizado de acordo com o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade (RTIQ) do Peixe Congelado (BRASIL, 2017b). A legislação brasileira estabelece que o limite máximo de glaciamento para o peixe congelado seja de 12%. Acima desse valor, considera-se a fraude, pois o peso do gelo é incorporado ao peso líquido do produto, e o consumidor acaba comprando água por pescado.

Além disso, a adição de água pode ocorrer pelo uso indevido de fosfato, um aditivo alimentar com função de retenção e manutenção da umidade no produto, promovendo a absorção hídrica intensional, além da redução da perda de fluidos durante a distribuição e a comercialização do produto (SAMPAIO, LOBÃO, ROCCO, 2018). De acordo com a legislação brasileira vigente, a Portaria no 329/2019 (BRASIL, 2019), que regulamenta os aditivos alimentares e coadjuvantes de tecnologia autorizados no pescado, é permitido o uso na água de glaciamento, e até 0,5g por 100g de amostra de pescado fresco (externamente ao produto). Quando a “salmoura” é aplicada por injeção ou tambleamento na musculatura, o processo é configurado como fraude.

Um estudo encontrado na literatura sobre esta fraude foi apresentado por Oliveira e colaboradores (2018), que avaliaram a quantidade de glaciamento em diferentes marcas de filé de Panga (Pangasius hypophthalmus) comercializados em Rio Verde-GO. Os resultados demonstraram diversas inconformidades em relação a rotulagem e ao peso descrito no rótulo, uma vez que havia a presença de excesso de gelo em todas as marcas, consideradas reprovadas, além de fraude, causando prejuízos econômicos aos consumidores.

O que fazer em caso de adulterações

É importante ressaltar que a aplicação da inspeção e fiscalização adequadas na cadeia produtiva do pescado minimiza a ocorrência de adulterações, além de garantir a padronização dos produtos finais por meio do cumprimento dos regulamentos técnicos de identidade e qualidade de cada produto (RTIQ), preconizados por legislações vigentes. Ou seja, o consumidor possui maior segurança em adquirir um produto devidamente inspecionado e fiscalizado. E em caso da observação de ato fraudulento com o pescado, o consumidor deve alertar os órgãos locais de vigilância sanitária.

Agradecimentos

Agradeço a colaboração e disponibilidade do Dr. Andrea Lafisca, Dr. André Muniz, Dra. Lilian Viana, e Dra. Solange Dias na revisão do texto.

Referências Bibliográficas

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BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Decreto n° 10.468, de 18 de agosto de 2020. Altera o Decreto nº 9.013, de 29 de março de 2017, que regulamenta a Lei nº 1.283, de 18 de dezembro de 1950, e a Lei nº 7.889, de 23 de novembro de 1989, que dispõem sobre o regulamento da inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, n. 159, p. 05, 19 ago. 2020a. Seção 1.

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<class=”title style-scope ytd-video-primary-info-renderer”>Palestra “Fraudes em Pescado” – Prof. André Luiz Medeiros de Souza (FIPERJ)

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