Segurança do alimento no caso de metais e metaloides em pescado: normas e legislações

O pescado é uma importante fonte de proteína para muitas populações ao redor do mundo. Entretanto, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a comercialização de pescado contaminado por substâncias químicas de origem antropogênica é, infelizmente, uma realidade global e responsável pelo óbito de cerca de 420 mil pessoas por ano (OPAS/OMS BRASIL, 2019).

Os corpos hídricos vêm cada vez mais sofrendo pressão das mais diversas atividades humanas, gerando importantes implicações para a Saúde Pública, uma vez que a qualidade ambiental dos oceanos está diretamente ligada à qualidade da saúde da população humana (KITE-POWELL et al., 2008; LAWS; FLEMING; STEGEMAN, 2008). Além disso, a degradação dos ecossistemas apresenta impacto mais direto e significativo em populações vulneráveis, como, por exemplo, pescadores artesanais, indígenas e quilombolas (MILANOVIĆ et al., 2020).

As vias de contaminação do pescado são diversas, e incluem bactérias, vírus, parasitas e substâncias químicas. Nesse contexto, os metais e os metaloides estão entre os contaminantes químicos mais importantes, demandando maior atenção. Esses poluentes são comumente encontrados no meio ambiente devido ao seu histórico de utilização em diversas atividades humanas (JÄRUP, 2003), apresentando alta persistência no ambiente e capacidade de acumular em diferentes organismos aquáticos. Em geral, metais e metaloides apresentam concentrações mais baixas em organismos herbívoros e mais altas em predadores. Porém, alguns desses elementos químicos possuem um elevado potencial de biomagnificação, aumentando suas concentrações ao longo da cadeia trófica (FLEMING et al., 2006; KITE-POWELL et al., 2008).

Os metais e os metaloides são classificados como não essenciais ou essenciais. Elementos não essenciais, como o alumínio (Al), o arsênio (As), o chumbo (Pb), o mercúrio (Hg) e o estanho (Sn), por exemplo, não apresentam nenhuma função biológica, podendo causar efeitos adversos mesmo quando presentes em baixas concentrações no organismo. Já os elementos essenciais, como o cobalto (Co), o cobre (Cu), o níquel (Ni), o selênio (Se) e o zinco (Zn), participam de diversos processos metabólicos, e suas deficiências podem ocasionar disfunções sérias no organismo (BOSCH et al., 2015), embora possam também se tornar tóxicos, dependendo da quantidade ingerida (ADEL et al., 2016), como mostrado na Figura 1 a seguir.

Figura 1: Representação gráfica da relação entre concentrações essenciais e não essenciais e seus efeitos nos organismos. Adaptada de Lima e Merçon (2011).

Casos de contaminação por metais em pescados são conhecidos e relatados há décadas na literatura científica, porém, sem chamar muita atenção do grande público. Isto só veio a acontecer após o emblemático caso ocorrido na cidade japonesa de Minamata (BORAK; HOSGOOD, 2007; EKINO et al., 2007; FRANCESCONI, 2007), onde surgiram diversos incidentes de intoxicação após o consumo de pescado por animais e pela população humana entre 1953 e 1956. Os sintomas observados incluíam sinais neurológicos, disartria, deficiência auditiva e perturbações do movimento ocular a dificuldades de equilíbrio e tremores, entre outros (HACHIYA, 2006). Porém, foi apenas em 1959 que um grupo de estudo da Escola de Medicina da Universidade de Kumamoto concluiu que a doença foi causada pela ingestão de grande quantidade de frutos do mar contaminados com mercúrio na sua forma orgânica e mais tóxica, chamada de metilmercúrio (ETO, 2000). Assim, veio à tona de modo mais contundente, tanto para a comunidade científica quanto para a sociedade como um todo, a necessidade de regulamentação desses contaminantes em pescado.

Os metais e os metaloides são encontrados no pescado em diferentes concentrações ao redor do mundo. Um exemplo importante é o do arsênio, um elemento que vigora em uma lista publicada pela OMS com os dez contaminantes químicos de maior preocupação para a saúde pública (WHO, 2021). Nesse caso, o pescado é considerado a principal fonte de ingestão alimentar de arsênio em humanos (BOSCH et al., 2015), e está presente de forma significativa na dieta de europeus e norte-americanos, devido ao alto consumo de pescado contaminado (BORAK; HOSGOOD, 2007; FRANCESCONI, 2007). Outros elementos tóxicos comumente encontrados em peixes são o chumbo e o cádmio, além do já citado mercúrio. É necessário, portanto, um controle rígido e uma adequada fiscalização dos alimentos por parte dos órgãos sanitários, tendo em vista os efeitos negativos que metais e metaloides podem causar.

Diversos países adotam limites de concentração para metais e metaloides, com o intuito de evitar efeitos na saúde dos consumidores (BOSCH et al., 2016). Tais limites são estabelecidos por diferentes órgãos de fiscalização e definem qual concentração máxima de um elemento químico em um determinado alimento é considerada segura para o consumo (FRANCESCONI, 2007). No Brasil, esses limites são definidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Os limites definidos, porém, nem sempre são os mesmos em todos os países. Por exemplo, o limite máximo de arsênio total considerado seguro para consumo em pescado no Brasil é definido como 1 mg kg-1 em peso úmido (ANVISA, 2013), enquanto outros países estabelecem diferentes valores máximos, variando de 0,1 mg kg-1 em peso úmido, na Venezuela, até 10 mg kg-1 em peso úmido em Hong Kong (TORRES; TRISTÃO DA CUNHA; RODRIGUES, 2017). Ademais, é importante ressaltar que a Organização Mundial da Saúde estabelece que, no caso de alguns contaminantes, como o arsênio e o chumbo, nenhum nível de ingestão pode ser considerado totalmente seguro para o consumo humano (WHO, 2019).

A literatura científica considera, em uma margem conservadora, que, no pescado, o arsênio inorgânico representa em torno de 10% do conteúdo total desse elemento, sendo essa a forma mais tóxica. (FSANZ, 2019). Dessa forma, em março de 2021, a legislação brasileira foi atualizada, a fim de dar mais segurança ao consumidor e a toda cadeia produtora de pescado. Segundo a nova Resolução RDC nº 487, de 26 de março de 2021, quando os resultados de concentração de arsênio total superarem 1 mg kg-1, devem ser realizadas análises de especiação desse elemento, a fim de quantificar sua forma inorgânica e verificar possíveis riscos à saúde (ANVISA, 2021).

Um outro metal muito estudado e amplamente descrito na literatura científica é o mercúrio. Sua concentração oscila significativamente entre os diferentes tipos de pescado, assim como entre peixes predadores e peixes não predadores. Isto é devido à grande capacidade desse metal de se acumular e magnificar ao longo da cadeia trófica, estando presente em concentrações mais altas em peixes predadores topos de cadeia. Outros elementos tóxicos, porém, não apresentam grande capacidade de biomagnificação, como o cádmio, não necessitando desse tipo de distinção entre peixes de diferentes nichos tróficos.

Alguns estratos da população são mais vulneráveis à contaminação por pescado, como as gestantes e as crianças. Assim, diversos países recomendam evitar ou reduzir significativamente o consumo de pescado durante os primeiros meses de gravidez, devido a preocupações sobre os efeitos de elementos tóxicos no desenvolvimento dos bebês.

Os limites estabelecidos por órgãos de fiscalização também podem variar de pessoa para pessoa, dependendo de idade, peso e condição de saúde individual. Por isso, alguns parâmetros devem ser calculados e levados em consideração para avaliar possíveis riscos humanos devido à ingestão de pescados contaminados com metais ou metaloides. Um exemplo é o Quociente de Risco Alvo, (em inglês, Target Hazard Quotient – THQ). O THQ é definido como uma razão entre a dose estimada de um certo contaminante e uma dose de referência estabelecida por órgãos de fiscalização, abaixo da qual não há risco significativo de consumo desse contaminante. Esse parâmetro tem como objetivo estimar os níveis de segurança de consumo de alimentos contaminados, levando em consideração diferentes características individuais (MUDGAL et al., 2010). 

Alguns estudos recentes vêm avaliando os riscos de consumo de pescado contaminado em certos estados brasileiros. Por exemplo, baixos riscos à saúde humana devido à ingestão de arsênio foram relatados no estado do Paraná, pois, mesmo muitos peixes contendo níveis de arsênio acima do limite estabelecido pela ANVISA, seria necessário consumir de 32 a 36 vezes a quantidade da média nacional de consumo de pescado, ou seja, 547 kg de pescado por ano, para atingir uma dose tóxica de arsênio, como relatado por Avigliano et al. (2020).

Verifica-se, dessa forma, a complexidade da questão de segurança do alimento e a necessidade de fiscalização constante, para permitir o consumo de alimentos de forma segura pela sociedade, com o menor risco possível à saúde. 

Agradecimentos:

RAHD tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) através de uma bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado e pelo processo número E-26/21.460/2019.

 

Referências

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ANVISA. Resolução de Diretoria Colegiada – RDC – No 42, de 29 de Agosto de 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0042_29_08_2013.html>. 

ANVISA. Resolução de Diretoria Colegiada – RDC – No 487, de 26 de Março de 2021. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-487-de-26-de-marco-de-2021-311593455>. 

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BORAK, J.; HOSGOOD, H. D. Seafood arsenic: Implications for human risk assessment. Regulatory Toxicology and Pharmacology, v. 47, n. 2, p. 204–212, 2007. 

BOSCH, A. C. et al. Heavy metals in marine fish meat and consumer health: A review. Journal of the Science of Food and Agriculture, v. 96, n. 1, p. 32–48, 2015. 

BOSCH, A. C. et al. Heavy metal accumulation and toxicity in smoothhound (Mustelus mustelus) shark from Langebaan Lagoon, South Africa. Food Chemistry, v. 190, p. 871–878, 2016. 

EKINO, S. et al. Minamata disease revisited: An update on the acute and chronic manifestations of methyl mercury poisoning. Journal of the Neurological Sciences, v. 262, n. 1–2, p. 131–144, 2007. 

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