Os desafios do aumento de escala em novos produtos na indústria de alimentos

Na crescente busca pela melhora na qualidade da alimentação, diversos produtos são desenvolvidos, muitas vezes resgatados de hábitos de nossos ancestrais. Dentre estes, poucos chamam tanto a atenção quando a tapioca. Entre os anos de 2015 e 2016, o faturamento em algumas regiões do país com vendas de tapioca cresceu mais de 300%1,2. Segundo a Associação Brasileira de Amido de Mandioca (ABAM), o aumento da área colhida da raiz aumentou 46% entre 2015 e 20183. De acordo com esses dados, principalmente a partir de 2015, houve um boom no consumo desse alimento no Brasil – talvez rápido demais. Deixando de lado a relevância nutricional, a atualmente chamada goma de mandioca hidratada chegou aos mercados e rapidamente encontrou seu caminho para as mesas dos consumidores e, consequentemente, para dentro de diversas fábricas. A adaptação para a larga escala ocorreu para muitas empresas sem o conhecimento real do processo, visto que esse produto era até então difundido artesanalmente em feiras locais, com produção totalmente manual. O fluxograma apresentado foi desenhado como uma proposta do processo de produção atualmente empregado por diversas indústrias que produzem a goma diretamente a partir da raiz de mandioca, ou hidratando a fécula adquirida de outras indústrias. Em alguns casos, as indústrias produzem ambos os produtos.

O perigo de industrializar produtos aparentemente simples como a tapioca sem estudos prévios é subestimar o potencial dos problemas que podem ocorrer. E de fato esse foi o cenário inicial. O produto era comprado nas feiras e durava entre 2-7 dias na geladeira. O consumidor, ciente da origem do produto, observava mais atentamente alterações de odor e de cor. Quando esse mesmo produto entrou nas prateleiras dos mercados em embalagens agradáveis e repletas de cores e informações, o consumidor se sentiu seguro para deixar aquele produto por mais tempo na geladeira. Rapidamente, observou-se que não havia tanta diferença da tapioca da feira, que apresentava apenas água e mandioca, totalmente adequada à tendência de menos conservantes. Mas então começaram a estufar e amarelar ainda nas gôndolas dos mercados e o prejuízo das empresas, assim como toda crise, fez rever o processo produtivo. Segundo dados do site Reclame Aqui, entre setembro/19 e março/20 as principais marcas de goma de tapioca receberam 140 reclamações referentes a alterações na textura, cor e/ou cheiro do produto, apesar dele estar dentro da validade.

O conhecimento da microbiologia de alimentos, muitas vezes subestimado, é essencial para conduzir um processo produtivo. Quando se pensa na Teoria dos Obstáculos de Leistner é preciso observar que a goma de tapioca hidratada, por si só, não apresenta barreira suficiente à multiplicação de micro-organismos. Esse alimento possui alta atividade de água, sua baixa acidez é propícia para o desenvolvimento de grupos microbianos distintos, sua temperatura de armazenamento é geralmente a ambiente, e não passa por tratamento térmico na indústria, capaz de reduzir a carga de contaminação.

É extremamente complexo, mesmo com boas práticas de fabricação, manter um produto com alta umidade sem nenhuma barreira ao crescimento microbiano. Algumas indústrias tentaram embalagens a vácuo, usando a barreira ao oxigênio como única estratégia, e tiveram ainda mais estufamento. Diversos microrganismos deterioradores são anaeróbios.

Diante do cenário, algumas empresas estudaram a implementação de conservantes como os sorbatos, usados em produtos semelhantes à tapioca, como produtos de panificação e biscoitos. O sucesso do método foi intermitente. Usaram estratégias como embalagens a vácuo combinadas com os conservantes, e novamente o sucesso foi intermitente. O conhecimento técnico do melhor modo de usar aditivos não é trivial, exige noção de equilíbrio químico, de temperatura, de pH, do melhor momento de adição dentro do processo, de qual aditivo é o mais indicado para o produto em questão baseado na contaminação encontrada, entre outros fatores. Microbiologia e química de conservantes andam lado a lado.

Todo esse movimento foi lento pois a falta de legislação específica fez com que fosse preciso adaptar informações a partir dos produtos à base de amido, féculas e farinhas ou pães e biscoitos. A nova Instrução Normativa IN 60/2019, que versa sobre Padrões Microbiológicos de Alimentos, no que tange produtos à base de amido estabelece limites apenas para os patógenos indicadores SalmonellaE.coli e B.cereus. Diversos relatos de consumidores do site Reclame Aqui5 indicam, até a presente data, a presença visível de bolores. Ainda não há limite estabelecido pela legislação para esses micro-organismos nesse produto. Ora, se existe um movimento contra a adição de conservantes – ou mais prudentemente, a favor da sua redução – é preciso, em contrapartida, monitorar os micro-organismos deterioradores como forma de assegurar a qualidade do produto que chega à mesa do consumidor.

A reflexão relevante no cenário atual é como equilibrar a importância do movimento de menos aditivos, por questão de segurança dos alimentos e demanda dos consumidores, com a questão da deterioração microbiana, pelo mesmo exato motivo. No meio de todos esses questionamentos, é essencial estabelecer/manter as Boas Práticas de Fabricação, com frequente treinamento dos colaboradores para que a manipulação, o acondicionamento e o transporte dos alimentos não sejam vias de contaminação. Cabe a nós, profissionais da área, achar estratégias para entregar sempre o produto mais seguro. A indústria de alimentos não se permite parar no tempo. 

 

Referências:

1.https://www.agrolink.com.br/noticias/livre-de-gluten–tapioca-ganha-o-consumidor-e-expande-mercado-da-mandioca_398350.html

2.http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2015/03/aumento-no-consumo-da-tapioca-anima-produtores-do-sergipe.html

3.https://abam.com.br/estatisticas/

4.http://insumos.com.br/aditivos_e_ingredientes/materias/125.pdf

5.https://www.reclameaqui.com.br/

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