Qualidade e segurança de polpas de frutas

INTRODUÇÃO

Segundo a Associação Brasileira de Produtores e Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas, 2024), o Brasil é considerado o terceiro maior produtor mundial de frutas, devido à sua diversidade na flora e condições climáticas, bem como devido às dimensões continentais. Com base nessa diversidade, a agroindústria brasileira tem como desafio garantir a preservação das características físico-químicas, nutricionais, sensoriais e higiênico-sanitárias dos derivados de frutas produzidos no território nacional por meio de metodologias de conservação (de Verçoza et al., 2024; Díaz-Delgado et al., 2024). A partir desse cenário, o processamento de frutas para a obtenção de polpas é uma alternativa viável para minimizar perdas da matéria-prima in natura e permitir que frutas sazonais estejam disponíveis ao longo de todo o ano para a sua utilização (Solomon; Oumer, 2021). 

Com o aumento da conscientização da população por alternativas alimentares mais saudáveis, o consumo de frutas in natura e de polpas vem aumentando gradativamente, uma vez que estes alimentos são ricos em nutrientes, como vitaminas, e possuem facilidade no armazenamento e no preparo para o consumo. Diante dessa elevada demanda do mercado, concomitantemente, elevou-se também a busca pela simplificação no processamento (Figura 1) e redução dos custos (Bezerra et al., 2023; Beal; Meza; Pascoal; 2024; Silva et al., 2024). 

Figura 1 – Fluxograma básico para produção de polpa de fruta

Fonte: Adaptado de dos Anjos, Castro e Rybka (2023).

Todavia, uma expansão no mercado consumidor tem promovido no Brasil a abertura de agroindústrias de pequeno porte que possuem limitação de conhecimento técnico, assim, processando os derivados de frutas informalmente (Mançano et al., 2023). A partir dessa consequência, há casos de processamento e comercialização de polpas de frutas em desacordo com padrões higiênicos e de identidade e qualidade estabelecidos pela legislação brasileira, gerando produtos desuniformes e com qualidade microbiológica duvidosa (Gomes et al.; 2021; Moraes; Machado, 2021; Batista; Froehlich, 2023). 

Portanto, embora existam regulamentações que padronizam a qualidade microbiológica de polpas de frutas, levantamentos sobre parâmetros microbiológicos realizados por Gomes et al. (2021) e por Moraes e Machado (2021) entre 2010 e 2020 destes derivados comercializados no país, constataram falhas na padronização microbiológica exigida pela legislação vigente. A análise foi realizada em um total de 1460 amostras e constatou-se que 19,79% das mesmas estavam em desacordo com o padrão quanto aos parâmetros microbiológicos estabelecidos para bolores e leveduras, bem como para E. coli (10,82%) e Salmonella (1,57%), além de 7,87% do total das amostras apresentaram a presença de Staphylococcus aureus e 0,20% de Serratia (Gomes et al., 2021; Moraes; Machado, 2021).

Em geral, falhas nas etapas de higienização (limpeza e sanitização) e na cadeia do frio (congelamento) provocam perda de qualidade e inadequação da segurança de polpas de frutas. Os parâmetros físico-químicos estão intrinsecamente relacionados com a uniformidade e aceitação sensorial do produto final. Por outro lado, os parâmetros microbiológicos permitem o monitoramento das condições de processamento, armazenamento, distribuição, prazo de validade e risco para a saúde pública (Bezerra et al., 2023).

A segurança é o alicerce primordial relativo aos atributos de qualidade dos alimentos produzidos nacionalmente e internacionalmente, pois é por meio desse conceito que padrões de qualidade são desenvolvidos para assegurar que estes estejam isentos de contaminantes de natureza física, química ou biológica (Saputra et al., 2024). Por meio de órgãos de fiscalização, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), são estabelecidos critérios para a garantia da segurança, como as Boas Práticas de Fabricação (BPF) e o sistema de Análises de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), a fim de oferecer produtos seguros à população (Tondo; Elias, 2023).

Um dos critérios a serem considerados na produção de polpas de frutas é a avaliação periódica das pessoas envolvidas quanto a sua saúde, assim como seus conhecimentos sobre a metodologia de manipulação e cuidados higiênicos. Além disso, as condições dos equipamentos e instalações, bem como dos vasilhames e utensílios também precisam ser consideradas, uma vez que são fontes potenciais de contaminação e devem ser higienizados com agentes de limpeza apropriados para indústrias de alimentos (Brasil, 1997a; Brasil, 1997b). 

Legislações que regulamentam a qualidade de polpas de frutas no Brasil

No Brasil, o Ministério da Saúde, através da ANVISA, e o MAPA monitoram e fiscalizam a padronização e inocuidade dos alimentos. Atualmente, o MAPA detém a Instrução Normativa nº 37, de 1º de outubro de 2018, e a Instrução Normativa, nº 49, de 26 de setembro de 2018, para tratar sobre os padrões de identidade e qualidade de suco e polpa de fruta (Brasil, 2018a; Brasil, 2018b). Em conjunto com estas legislações, a ANVISA publicou a Instrução Normativa nº 161, de 1° de julho de 2022, que dispõe sobre os padrões microbiológicos dos alimentos (Brasil, 2022).

Para o processamento de polpas de frutas existem etapas que exigem, no caso de agroindústrias, a manipulação manual do alimento, como a seleção e o descascamento, e manipulação mecânica, como o despolpamento. Estas etapas devem obrigatoriamente ser executadas conforme as Boas Práticas de Fabricação e os produtores devem obedecer ao estabelecido pela ANVISA na Portaria nº 326, de 30 de julho de 1997, e na RDC nº 275, de 21 de outubro de 2002, assim como na Portaria nº 368, de 4 de setembro de 1997, do MAPA. Nestas legislações constam que, onde houver produção/industrialização, fracionamento, armazenamento e transporte de alimentos industrializados, deve-se manter os cuidados higiênicos necessários para evitar a multiplicação de microrganismos (Brasil, 1997a; Brasil, 1997b, Brasil, 2002).

No Brasil, durante quase duas décadas, os padrões microbiológicos para polpas de frutas foram estabelecidos pela Instrução Normativa nº 01 de 07 de janeiro de 2000 do MAPA e pela Resolução RDC nº 12, de 02 de janeiro de 2001 da ANVISA. Entretanto, em 2018, o MAPA atualizou a legislação por meio da publicação da Instrução Normativa, nº 49, de 26 de setembro de 2018, e a ANVISA fez o mesmo, ao publicar a Instrução Normativa nº 161, de 1° de julho de 2022 (Brasil, 2000; Brasil, 2001; Brasil, 2018a; Brasil, 2022). 

Por meio dessas novas legislações, a ANVISA alterou o padrão estabelecido anteriormente como coliformes termotolerantes para estabelecer o limite para Escherichia coli de 10 e 10² UFC/g em um plano de amostragem de três classes com 5 amostras, sendo que apenas duas podem apresentar contagens entre o limite mínimo e máximo. Enquanto o MAPA mantém a nomenclatura de coliforme fecal com um máximo de 1 UFC/g. A ausência de Salmonella já era informada nas duas legislações antigas e continuou presente nas atuais, entretanto, o MAPA não estabelece uma quantidade amostral a ser analisada, enquanto a ANVISA informa a obrigatoriedade da ausência em 10 amostras analisadas (Brasil, 2018a; Brasil, 2022). 

Já o padrão de qualidade para bolores e leveduras era contemplado apenas na Instrução Normativa do MAPA (máximo 5×10³/g para polpa in natura, congelada ou não, e 2×103/g para polpa conservada quimicamente e/ou que sofreu tratamento térmico), sendo posteriormente adicionado a Instrução Normativa nº 161/2022 (103 a 104 UFC/g em um plano de amostragem de três classes com 5 amostras, sendo permitida apenas uma com contagem entre o limite mínimo e máximo) (Brasil, 2018a; Brasil, 2022).

Já em relação aos padrões físico-químicos, a Instrução Normativa nº 37, de 1º de outubro de 2018, do MAPA, no Anexo II, no geral, trata sobre os padrões mínimos e/ou máximos de sólidos solúveis (°Brix), sólidos totais (g/100g), pH, acidez total expressa em ácido predominante (g/100g), açúcares totais (g/100g) e ácido ascórbico (mg/100g). Entretanto, para cada fruta, existem parâmetros distintos (Brasil, 2018a), uma vez que cada matéria-prima apresenta composições particulares.  

Anualmente, muitas pessoas sofrem com hospitalizações e possíveis óbitos provocados por doenças veiculadas por alimentos, logo, o conceito da segurança dos alimentos é o pilar no campo da saúde pública, devido a uma variedade de patologias transmitidas pela ingestão de alimentos contaminados (Robert; Wittler, 2023). Assim, conhecer as legislações que abordam sobre a garantia da obtenção de um alimento inócuo é uma necessidade, a fim de evitar surtos por contaminações microbiológicas preservando a segurança de alimentos.

Microrganismos contaminantes em polpas de frutas

É importante considerar que a presença de um risco biológico para a saúde do consumidor está intimamente ligada à presença e multiplicação de microrganismos patogênicos que podem advir de contaminações em etapas de pré-colheita (contaminação das frutas frescas antes da colheita) e pós-colheita (falhas de higiene operacionais, uso de água contaminada, embalagens impróprias e tratamento térmico inadequado) (Bezerra et al., 2023).

Em geral, a microbiota contaminante está presente na parte externa das frutas, enquanto a parte interna é praticamente estéril, a menos que haja alguma injúria em alguma parte da casca. Isso está relacionado com a característica intrínseca de muitas frutas e seus derivados, como a elevada acidez que restringe o desenvolvimento de microrganismos deterioradores e patogênicos (Dams, 2023). Normalmente, na parte externa das frutas são encontrados bolores, leveduras, bactérias lácticas e outros microrganismos ácido tolerantes como bactérias acéticas e algumas espécies de Bacillus (de Sousa et al., 2020). Condições higiênico-sanitárias da matéria-prima, manipuladores, equipamentos e ambiente industrial são fatores que podem ocasionar contaminações nas polpas de frutas (Gomes et al., 2021). 

Apesar das legislações atuais estabelecerem padrões apenas para coliformes fecais, Escherichia coli, Salmonella e bolores e leveduras para polpas de frutas, Bacillus cereus também pode ser encontrado neste alimento (de Sousa et al., 2020). Esta bactéria pode resistir a tratamentos térmicos, como a pasteurização, devido à capacidade de produzir esporos, além de se multiplicar em temperatura de refrigeração, o que torna o congelamento uma necessidade (Torii; Ohkubo, 2023). Normalmente, o pH ácido das polpas de frutas, geralmente menor que 4,5, impede o desenvolvimento de B. cereus (Iosca et al., 2023).

Bolores e leveduras são os principais microrganismos deterioradores de polpas de frutas devido a sua maior resistência às condições ácidas, o que possibilita a deterioração de frutas. Entretanto, estes microrganismos não resistem a temperatura de pasteurização, sendo, então, necessária a sua aplicação para uma redução considerável dessa microbiota (Fellows, 2019; Dams, 2023).

Além da pasteurização, pode-se também fazer o uso de conservantes químicos além de tecnologias emergentes no processamento de frutas, como alta pressão hidrostática, campo elétrico pulsado, aquecimento ôhmico, raio x, ultrassom, micro-ondas, entre outras (Iqbal et al., 2019; Siddique et al., 2024; Zhu et al., 2024). Assim, para reduzir custos dos pequenos empreendimentos e considerando o pH das polpas de frutas menor que 4,5, o processo mais aplicado ainda é a pasteurização, a qual, após a aplicação de temperaturas até 100 °C, microrganismos patogênicos e deterioradores são inativados (Fellows, 2019).

Com isso, é necessário um trabalho de fiscalização sanitária para a avaliação da qualidade das polpas de frutas comercializadas no Brasil, bem como um trabalho por parte de órgãos voltados à educação para a conscientização dos produtores de polpas de frutas a fim de fornecer alimentos seguros.

CONCLUSÃO

O tratamento térmico mais utilizado no Brasil para a elaboração de polpas de frutas é a pasteurização e este desempenha um papel essencial no controle microbiológico dos alimentos, contribuindo para a redução de microrganismos patogênicos e deteriorantes a níveis aceitáveis. Contudo, este método é aplicado apenas durante o processamento e não após o produto envasado, logo, microrganismos advindos de diversos locais como manipuladores, utensílios, equipamento, e outros, podem contaminar novamente o alimento recém processado. Isso abre margem para o consumo de alimentos com uma carga microbiana potencialmente prejudicial à saúde caso as polpas de frutas sejam mal acondicionadas.

Para garantir a qualidade do produto a ser elaborado, a adoção das Boas Práticas de Fabricação, Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) e controle microbiológico para a produção de polpas de frutas é de suma importância. As legislações do MAPA e da ANVISA oferecem um suporte adequado às empresas de processamento de polpas de frutas para assegurar a qualidade microbiológica não apenas destes derivados, mas também de outros alimentos abrangidos por essas regulamentações.

 

REFERÊNCIAS

Sair da versão mobile