Qualidade microbiológica dos alimentos ofertados nas escolas públicas

Introdução

Com o intuito de garantir o direito à alimentação adequada e segura previsto na constituição federal, e erradicar a fome, na década de 50 foi criado o primeiro programa de merenda escolar em âmbito nacional. Este programa, ao longo dos anos, passou por várias modificações e somente a partir do ano de 1979 passou a denominar-se Programa Nacional de Alimentação Escolar, PNAE (FNDE, 2023).

O PNAE visa garantir a oferta de alimentação em âmbito escolar a todos os alunos matriculados na educação básica de ensino público, sendo considerado a política pública de maior longevidade do país na área de segurança alimentar e nutricional (PEIXINHO, 2013). Ele tem como objetivo contribuir para o crescimento e desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo (BRASIL, 2009).

Apesar de ser um programa de âmbito federal, ele funciona de forma descentralizada, ou seja, a união repassa aos estados e municípios valores financeiros, que visam suplementar a oferta da alimentação escolar. 

No ambiente escolar, a implementação de boas práticas de manipulação é de extrema importância para manter a qualidade nutricional e microbiológica das refeições. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), estima-se que 600 milhões de pessoas adoecem anualmente ao consumir alimentos contaminados por bactérias, vírus, toxinas ou produtos químicos e, dessas, cerca de 420 mil vão a óbito (FAO, 2019). A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima ainda que nos países localizados na região das Américas, cerca de 77 milhões de pessoas por ano sofrem de alguma doença transmitida por alimento e, deste total, cerca de 33 milhões são crianças menores de 5 anos, das quais mais de 2 milhões chegam a óbito (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2021).

A doença de transmissão hídrica e alimentar, DTHA, é uma síndrome causada pela ingestão de alimentos ou água contaminados e normalmente é caracterizada pela perda de apetite, náuseas, vômitos, diarreia, acompanhada ou não de febre. Encontra-se mais de 250 tipos de DTHA no mundo, em que a maioria é de infecções causadas por bactérias e suas toxinas, vírus e outros parasitas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).

A contaminação dos alimentos pode acontecer, principalmente, por microrganismos deterioradores e por patógenos como Salmonella spp., Listeria monocytogenes, estirpes patogênicas de Escherichia coli e Staphylococcus aureus, e a sobrevivência e multiplicação desses microrganismos dependem de condições ótimas de crescimento.

Em alimentos de baixa acidez, com pH maior que 4,5 como leite, carnes e pescados, é possível observar a predominância de bactérias esporuladas como Clostridium spp. e Bacillus cereus, bactérias patogênicas aeróbias como Salmonella spp. e bactérias patogênicas anaeróbias como Clostridium spp. Já nos alimentos ácidos, com pH menor que 4,5 como frutas, hortaliças e sucos, predomina o crescimento de bactérias láticas, acéticas, esporuladas, bolores e leveduras.

Alimentos ofertados na educação pública básica

De acordo com a Lei n° 11.947 (BRASIL, 2009), os cardápios fornecidos na alimentação escolar deverão ser elaborados pelo(a) nutricionista, responsável técnico, com utilização de gêneros alimentícios básicos, observando as referências nutricionais, os costumes alimentares, a cultura e tradição alimentar da região. Quando necessário, deverão ser adaptados, a fim de atender estudantes que apresentem diagnóstico de necessidades nutricionais especiais, como: diabetes, doença celíaca, intolerância à lactose, anemias, hipertensão, entre outras.

A Resolução n°08/2020 (BRASIL, 2020) traz algumas obrigatoriedades a serem executadas nos cardápios escolares. Em escolas de período parcial, deve-se ofertar no mínimo 280g/estudantes/semana de frutas in natura, legumes e verduras, e em escolas de período integral, no mínimo 520g/estudantes/semana, devendo inserir alimentos que sejam fontes de ferro heme ou ferro não heme, acompanhado de facilitadores da sua absorção, no mínimo quatro dias por semana; e a inclusão de alimentos fontes de vitamina A no mínimo três dias por semana. Além de ser limitada a oferta de determinados alimentos (Tabela 1), é proibida a oferta de alimentos ultraprocessados e a adição de açúcar, mel e adoçante nas preparações culinárias e bebidas para as crianças até três anos de idade, além da oferta de gordura trans em todos os cardápios. 

Tabela 1 – Alimentos com oferta limitada nos cardápios do PNAE

Alimentos

Oferta limitada

Produtos cárneos 

Duas vezes ao mês.

Legumes e verduras em conserva 

Uma vez ao mês.

Bebidas lácteas com aditivos ou adoçados

Período parcial: uma vez ao mês.

Período integral: duas vezes ao mês.

Biscoito, bolacha, pão e bolo

Período parcial: três vezes por semana, quando ofertada 2 refeições.

Período integral: sete vezes por semana, quando ofertada três ou mais refeições.

Doce

Uma vez ao mês.

Preparações regionais doces 

Período parcial: duas vezes por mês.

Período integral: uma vez por semana.

Margarina ou creme vegetal 

Período parcial: duas vezes por mês.

Período integral: uma vez por semana.

Fonte: BRASIL, 2020.

O planejamento dos cardápios e a porção de alimentos ofertados devem ser diferentes de acordo com a faixa etária dos estudantes, a fim de atender às necessidades nutricionais médias. 

Armazenamento dos alimentos nas escolas 

Os cuidados com os gêneros alimentícios se iniciam durante o recebimento, que deve ser realizado em área protegida e limpa, adotando medidas que visem reduzir as chances de contaminação dos alimentos presentes nas unidades (BRASIL, 2004). Os entregadores e veículos de transporte devem apresentar-se em condições higiênicas satisfatórias e as embalagens devem estar íntegras e limpas. É necessário, ainda, atentar-se às características quantitativas, qualitativas e sensoriais dos produtos. No caso de produtos que necessitam de temperaturas especificas, estas devem ser conferidas e anotadas (SÃO PAULO, 2013). A Tabela 2 expressa as recomendações de temperaturas durante o recebimento dos gêneros alimentícios. 

Tabela 2 – Temperatura dos gêneros alimentícios durante o recebimento. 

Congelados -12 °C (doze graus Celsius negativos) ou temperatura menor, ou conforme recomendação do fabricante.
Resfriados Pescados de 2 a 3 ºC (dois a três graus Celsius) ou conforme recomendação do estabelecimento produtor.
Carnes de 4 a 7 ºC (quatro a sete graus Celsius) ou conforme recomendação do frigorífico produtor.
Demais produtos de 4 a 10 ºC (quatro a dez graus Celsius) ou conforme recomendação do fabricante.

Fonte: Portaria CVS 5, de 09 de abril de 2013

Uma estrutura adequada para o armazenamento dos alimentos é de grande importância para a garantia da qualidade higiênico-sanitária deles. Segundo a Resolução n°216/2004 (BRASIL, 2004), os gêneros alimentícios devem ser armazenados em locais limpos e organizados sobre paletes, estrados ou prateleiras, sendo estes de material liso, resistente, impermeável e lavável; respeitando um espaçamento mínimo que garanta adequada ventilação e limpeza. 

Produtos que necessitem de armazenando em temperaturas especiais devem seguir a recomendação do fabricante e, na ausência dessas, a Tabela 3 indica o recomendado pela Portaria CVS 5, de 09 de abril de 2013. Os alimentos devem ser agrupados em volumes que permitam o resfriamento adequado no centro do produto. 

Tabela 3 – Temperatura dos gêneros alimentícios para resfriamento e congelamento 

Produtos congelados
Temperatura recomendada (Graus Celsius) Prazo de Validade (Dias)
0 a – 5 (entre zero e 5 graus negativos) 10
– 6 a -10 (entre seis e 10 graus negativos) 20
-11 a -18 (entre onze e dezoito graus negativos) 30
< -18 (menor que dezoito graus negativos) 90
Produtos Resfriados
Produtos Temperatura recomendada (Graus Celsius) Prazo de Validade (Dias)
Pescados e seus produtos manipulados crus Máximo 2 (dois graus) 3
Pescados pós-cocção Máximo 2 (dois graus) 1
Alimentos pós-cocção, exceto pescados Máximo 4 (quatro graus) 3
Carnes bovina e suína, aves, entre outras, e seus produtos manipulados crus Máximo 4 (quatro graus) 3
Espetos mistos, bife rolê, carnes empanadas cruas e preparações com carne moída Máximo 4 (quatro graus) 2
Frios e embutidos, fatiados, picados ou moídos Máximo 4 (quatro graus) 3
Maionese e misturas de maionese com outros alimentos Máximo 4 (quatro graus) 2
Sobremesas e outras preparações com laticínios Máximo 4 (quatro graus) 3
Demais alimentos preparados Máximo 4 (quatro graus) 3
Produtos de panificação e confeitaria com coberturas e recheios, prontos para o consumo Máximo 5 (cinco graus) 5
Frutas, verduras e legumes higienizados, fracionados ou descascados; sucos e polpas de frutas Máximo 5 (cinco graus) 3
Leite e derivados Máximo 7 (sete graus) 5
Ovos Máximo 10 (dez graus) 7

Fonte: Portaria CVS 5, de 09 de abril de 2013

Os alimentos que passarão por cocção devem atingir temperatura de, no mínimo, 70 °C em todas as suas partes e, o alimento preparado, deve permanecer em condições que não favoreçam o crescimento de microrganismos, com temperatura acima de 60°C por, no máximo, 6 horas (BRASIL, 2004).

Alguns casos e surtos envolvendo alimentos servidos em escolas públicas da educação básica

São considerados surtos de DTHA quando duas ou mais pessoas manifestam os mesmos sintomas de doença semelhante após consumirem alimentos contaminados, enquanto os casos são isolados. No entanto, é importante ressaltar que para doenças de alta gravidade, como Botulismo e Cólera, a confirmação de apenas um caso já é considerado um surto. No período de 2007 a 2019, no Brasil foram notificados 9.030 surtos de DTHA, com 160.702 doentes e 146 óbitos. Dos surtos notificados, apenas 36,27% dos agentes etiológicos foram reconhecimentos, sendo os mais recorrentes aqueles que envolveram Salmonella spp (24,8%), Escherichia coli (23,5%), Staphylococcus spp. (17,9%), Bacillus cereus (9,9%) e Clostridium spp. (7,63%) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2021).

Cavalcante et al. (2017) realizaram um estudo que investigou o surto de DTHA ocorrido em uma escola localizada na cidade de Russas, Ceará. Foram preenchidas 342 Fichas de Inquérito Coletivo de Surtos de DTHA, sendo que 57,6% dessas identificaram infecção alimentar. Os sintomas que mais se repetiram foram náuseas (81,2%), vômitos (56,8%) e cólicas (56,3%) e estes tiveram início de uma até oito horas após o almoço. Nas amostras coletadas das preparações servidas, foram encontradas a presença de Escheichia coli spp. em panqueca de frango, sendo essa a possível causa do surto.

Rudakoff et al. (2018) analisaram as condições higiênico-sanitárias das Unidades de Alimentação e Nutrição Escolares (UANE), a qualidade microbiológica das refeições servidas e da água dos bebedouros na rede municipal de educação de São Luís, Maranhão. As condições higiênico-sanitárias foram avaliadas em 40 escolas por uma Lista de Verificação de Boas Práticas e os autores verificaram que todas as UANE apresentaram risco sanitário regular. Para análise da qualidade microbiológica das refeições servidas, realizou-se a quantificação de coliformes a 35°C e a 45°C, enumeração de Escherichia coli, de estafilococos coagulase positiva e a pesquisa de Salmonella spp. de 57 amostras, sendo que nenhum alimento foi considerado impróprio para consumo. Em relação aos bebedouros, foram analisadas 64 amostras e encontrou-se alto índice de contaminação da água dos mesmos, com 48,4% das amostras positivas para coliformes totais e 12,5% para Escherichia coli.

A qualidade higiênico-sanitária de produtos de origem animal utilizados na alimentação escolar no município de Pelotas, Rio Grande do Sul, foi avaliada por Silveira et al. (2019), utilizando o padrão microbiológico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a presença de Campylobacter e de Salmonella nos produtos de frangos. As análises foram feitas em cinco amostras de todos os lotes de leite UHT, bebida láctea e filés de frango que deram entrada no período de onze meses, sendo analisadas 55 amostras. Os resultados se apresentaram de acordo com os padrões exigidos pela ANVISA, exceto para quatro amostras de filé de frango, em que foram detectadas a presença de Salmonella sp. que pode comprometer a saúde das crianças. 

Sousa et al. (2021), durante análise epidemiológica dos surtos de DTHAs no estado do Piauí, entre os anos 2015 e 2019, constataram evidências de subnotificações e ausência de exames laboratoriais, impossibilitando a caracterização do agente etiológico e a caracterização da DTHA. Os autores afirmam ainda que em 78,95% dos casos, o alimento responsável é ignorado, o que contribuí para o desconhecimento da origem e restrição das ações de controle de produção, dificultando os cuidados que deveriam ser tomados a fim de minimizar os riscos. 

No período de agosto a outubro de 2021, 13 municípios do estado do Rio Grande do Sul, registraram surtos de doenças diarreicas aguda (DDA) em creches ou escolas e, até o início de outubro do mesmo ano, cerca de 2.000 casos já haviam sido registrados, sendo o principal agente etiológico identificado o Norovírus (GZH SAÚDE, 2021). 

Nesse sentido, tanto os profissionais que assumem responsabilidade   técnica de uma determinada unidade de alimentação, quanto outros profissionais como nutricionista, profissionais do setor administrativo e manipuladores, devem periodicamente avaliar e elaborar um diagnóstico do atendimento das Boas Práticas de Fabricação, a fim de definir estratégias para que as não conformidades identificadas possam ser corrigidas e, assim, evitar a contaminação dos alimentos (OLIVEIRA et al., 2022).

Boas Práticas de Fabricação (BPF) de alimentos como forma de evitar a contaminação 

De acordo com a Resolução n°216 (BRASIL, 2004), Boas Práticas Fabricação (BPF) são técnicas adotadas por serviços de alimentação que visam garantir a qualidade higiênico-sanitária dos alimentos fornecidos. A adoção das BPF é um fator determinante para a qualidade microbiológica dos alimentos prontos para consumo, mas as escolas não possuem uma legislação própria quanto as BPF e, por isso, devem seguir as legislações vigentes quanto aos serviços de alimentação (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).

O Manual de Boas Práticas (MBP) é um documento cuja finalidade é caracterizar os procedimentos a serem adotados pelos serviços de alimentação. Este deve trazer as exigências de higienização de edifícios, a manutenção e higienização das instalações, dos equipamentos e utensílios, o controle da água de abastecimento, o controle integrado de vetores e pragas urbanas, a capacitação profissional, o controle da higiene e saúde dos manipuladores, o manejo de resíduos e o controle e garantia de qualidade do alimento preparado (BRASIL, 2004).

Segundo a Resolução n°216 (BRASIL, 2004), os serviços de alimentação devem implementar os Procedimentos Operacionais Padronizados (POPs) relacionados à higienização de instalações, equipamentos e móveis; controle integrado de vetores e pragas urbanas; higienização do reservatório; higiene e saúde dos manipuladores. Os POPs são documentos que apresentam como finalidade descrever passo a passo sobre como desenvolver determinada atividade em um estabelecimento (BRASIL, 2002). O conhecimento e a aplicação das BPF e dos POPs garantem práticas padronizadas de higienização, o que torna fácil a identificação de possíveis erros no processo de higienização, a fim de evitar contaminações indesejáveis dos alimentos ofertados nas escolas públicas.

Referências 

 

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