Legislação sanitária de produtos de origem animal: complexidades e atualizações

A inspeção sanitária de produtos de origem animal no Brasil foi regulamentada na década de 50, mas foi a partir de 1989, através da Lei 7.889, que a comercialização dos produtos de origem animal começou a ter restrições conforme as esferas de inspeção que os estabelecimentos estavam submetidos. Além disso, nunca houve um olhar diferenciado para inspeção sanitária e industrial de produtos de origem animal produzidos por estabelecimentos em pequena escala. A lógica dos requisitos para atendimento das exigências sanitárias sempre reportou para a escala industrial.

Atualmente, nosso país possui três tipos de Serviços de Inspeção: Serviço de Inspeção Federal (SIF); Serviço de Inspeção Estadual (SIE) e Serviço de Inspeção Municipal (SIM). Produtos com selo SIF, por exemplo, produzidos em Santa Catarina poderão ser comercializados em qualquer estado do Brasil. Ou seja, uma unidade de beneficiamento de carne que produz presunto no estado da Bahia e que dispõe do selo SIE somente poderá vender seus produtos nos municípios do estado da Bahia. Já para produtos com selo SIM, a área de comercialização é restrita tão somente ao município de origem.

Atualmente no Brasil existem várias leis que regulamentam os serviços de inspeção sanitária de produção industrial de alimentos. Segundo Perez et. al (2009) esse conjunto de leis (federal, estadual e municipal) consiste no principal entrave para a expansão e legalização da produção e comercialização de produtos coloniais, processados em estabelecimentos familiares de pequeno porte. Segundo a autora, já houve ampla discussão sobre a legislação sanitária dos produtos de origem animal para a agroindústria familiar, mas pouco se avançou, principalmente, quando o que se almeja é a adaptação da legislação vigente para atender as necessidades das agroindústrias familiares de pequeno porte. A legislação sanitária atual foi criada para atender os estabelecimentos de grande porte e, portanto, não contempla as necessidades das agroindústrias familiares de pequeno porte. As dificuldades em adequar as instalações às normas sanitárias dificultam a legalização destas agroindústrias familiares (LANES, 2014).

A necessidade de que os empreendimentos possuam inspeção federal para a comercialização de produtos origem animal em âmbito nacional atrelado à exigência de grandes instalações (não adequadas à produção em pequena escala), bem como a morosidade na avaliação dos processos e o não reconhecimento das especificidades regionais são apontadas como principais empecilhos à legalização das agroindústrias de pequeno porte (MDA, 2010). A fim de avançar nesta temática, foi publicado o Decreto nº 5.741/2006 (BRASIL, 2006) que regulamenta o SUASA novo Sistema de Inspeção criado pela Lei nº 9.712 (BRASIL, 1998). O objetivo foi a unificação dos serviços de inspeção sanitária do País visando a superação dos estrangulamentos identificados para os pequenos estabelecimentos. Em função da pouca adesão dos Estados, Distrito Federal e municípios ao SUASA, foi elaborado o Decreto nº 7.216 (BRASIL, 2010), o qual traz inovações no sentido de respeitar as especificidades regionais dos produtos e das diferentes escalas de produção incluindo a agroindústria rural de pequeno porte, possibilitando que os Estados, Distrito Federal e municípios editem normas específicas relativas às condições gerais das instalações, equipamentos de estabelecimentos da agricultura familiar, bem como deu autonomia para que os Estados aderidos ao SISBI-POA pudessem indicar municípios ao Sistema sem a necessidade de que o MAPA enquanto instância central auditasse previamente os municípios.

Portanto a partir da criação do SUASA (Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária) houve a introdução de uma nova compreensão a partir do atendimento dos requisitos sanitários mediante uma lógica de equivalência, ou seja, o conceito de que um Serviço de Inspeção Municipal (SIM) ou Serviço de Inspeção Estadual (SIE) pode ser equivalente ao Federal no âmbito de suas rotinas de inspeção e fiscalização, de modo que podem alcançar os mesmos objetivos, ou seja, garantir o registro e fabricação de produtos de qualidade e inócuos ao consumidor final. Essa condição oportunizou ampliação da comercialização para aqueles estabelecimentos registrados em esfera SIE ou SIM.

No dia 15 de junho de 2018 ocorreu mais um avanço no âmbito das legislações sanitárias inclusivas mediante publicação da Lei no 13.680/2018 que alterou o art. 10 da Lei no 1.283/1950 justamente para dispor sobre o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal. A Lei no 13.680/18 promoveu adequação no processo de fiscalização dos produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal, permitindo a comercialização interestadual desses produtos. A lei definiu ainda que, tais produtos, além do selo do serviço de inspeção oficial, serão identificados por selo único com a indicação ARTE, cuja identidade visual está contemplada na IN MAPA 28/2019. Esta Instrução Normativa, conforme estabelecido no Manual de Construção e Aplicação do Selo ARTE, detalha o modelo de logotipo a ser utilizado na rotulagem dos produtos dos estabelecimentos registrados como artesanais nas Secretarias de Agricultura e Pecuária dos Estados e do Distrito Federal.

Segundo Mior (2005), a agroindústria familiar rural é uma forma de organização em que a família rural produz, processa e/ou transforma parte de sua produção agrícola e/ou pecuária, visando sobre tudo à produção de valor de troca que se realiza na comercialização.

As agroindústrias de pequeno porte, que processam alimentos de origem animal, devidamente registradas no SIM do respectivo município, localizadas em municípios que não possuem SISBI-POA ou outro Sistema de Equivalência, somente podem comercializar os seus produtos dentro do município onde estão inseridas. Esta restrição de área de comércio está prevista na Lei Federal 7.889/89 (BRASIL, 1989), onde em seu artigo 4º, dispõe sobre a delegação de competências para realizar a inspeção dos produtos de origem animal. Sendo assim, há um crescente interesse por parte dos municípios e das agroindústrias locais em obter a certificação de equivalência estadual, SUSAF-RS, ou nacional, SISBI-POA, pois a adesão aos sistemas referidos significa, respectivamente, permissão para comercializar em todo o estado ou em todo o Brasil, o que possibilita o alcance de novos mercados consumidores, com perspectivas de incremento de renda, sobrevida do empreendimento e permanência do agricultor no campo. Segundo Lanes (2014) a busca pelo SISBI-POA e SUSAF-RS já está sendo trabalhado, por exemplo, na Quarta Colônia, região de abrangência da Emater Santa Maria/RS, na busca pela padronização e harmonização dos procedimentos de inspeção de produtos de origem animal para garantir a inocuidade e segurança dos alimentos. Contudo, faltam normas técnicas específicas, padronizadas, para que tais agroindústrias busquem a legalização (PEREZ et. al, 2009), bem como possam ser indicadas para participação aos sistemas de inspeção sanitária equivalente citados. De acordo com a EMATER-MG (MINAS GERAIS, 2008) apenas 6% dos 15.423 agroindústrias familiares existentes em Minas Gerais possuem alvará ou registro sanitário.

O Decreto no 9.918/19 regulamentou a Lei 13.680/18 e dispôs sobre o que são os produtos de origem animal produzidos de forma artesanal; requisitos de identificação de produtos; competências dos órgãos envolvidos e funcionamento da fiscalização do uso do Selo Arte. Segundo o artigo 5 do Decreto 9.918/2019, para que um produto seja considerado artesanal, este deverá atender a sete requisitos, a saber:

  1. Matérias-primas de origem animal devem ser beneficiadas na propriedade onde se localiza a unidade de processamento ou tenham origem determinada;
  2. Adoção de técnicas e utensílios predominantemente manuais em qualquer fase do processo produtivo, que tenha influência ou determine a qualidade e a natureza do produto final;
  3. Adoção de boas práticas de fabricação com o propósito de garantir a produção de alimento seguro ao consumidor;
  4. Adoção de boas práticas agropecuárias na unidade de produção da matéria-prima ou nas unidades de origem determinada, que contemplem sistemas de produção sustentáveis;
  5. Produto final é de fabrico individualizado e genuíno, podendo existir variabilidade sensorial entre os lotes;
  6. Uso de ingredientes industrializados é restrito ao mínimo necessário, não sendo permitida a adoção de corantes, aromatizantes e demais aditivos considerados cosméticos;
  7. E o processamento necessariamente sendo feito, prioritariamente, a partir de receita tradicional, que envolva técnicas e conhecimentos de domínio dos manipuladores.

Percebe-se que até o ano de 2006 estava em funcionamento no país um modelo convencional de inspeção sanitária de produtos de origem animal, sem padronização entre os diversos serviços. Naquele momento havia uma divisão de responsabilidades de cada serviço, definida pela legislação sanitária vigente, de acordo com a área geográfica onde os produtos de origem animal eram comercializados. Sendo, portanto, a criação do SISBI-POA, a partir do SUASA, um marco regulatório divisor de águas no Brasil, uma vez que esse sistema busca a padronização dos procedimentos de inspeção de produtos de origem animal, de modo a garantir a segurança de alimentos e inocuidade dos produtos de origem animal, independentemente da esfera de inspeção original

A implantação do SUASA, portanto, tem por objetivo a reorganização do sistema inspeção sanitária de produtos de origem animal no Brasil buscando descentralização, mas de forma integrada, onde a União (leia-se MAPA enquanto Instância Central) é o responsável pela coordenação de todo o Sistema, os Estados e o Distrito Federal se apresentam como Instância Intermediária e os municípios, por fim, como Instância Local. Para participar do SUASA, os serviços de inspeção dos estados e dos municípios devem solicitar a adesão. Essa adesão ao SUASA é voluntária, isto é, depende da decisão de cada serviço (de cada SIE e SIM). A adesão pode ser individual (cada serviço) ou, no caso de municípios, também em forma associativa, por meio de consórcios de municípios. A base para a adesão dos serviços ao SUASA é o reconhecimento da sua equivalência. Reforçamos aqui este conceito, anteriormente destacado, o qual significa obter os mesmos resultados em termos de qualidade higienicossanitária e inocuidade dos produtos, mesmo que o serviço de inspeção do estado, Distrito Federal ou município tenha sua própria legislação, e que utilize critérios e procedimentos de inspeção, aprovação de instalações e registro dos estabelecimentos, diferentes dos outros serviços de inspeção. Após a adesão dos serviços de inspeção estaduais e municipais ao SUASA, todo o funcionamento desses serviços será regido pela própria legislação (lei, decreto, portaria, resolução etc) dos respectivos estados e municípios. Além disso, os produtos de agroindústrias inspecionados por um serviço integrante do SUASA podem ser comercializados em todo o território nacional.

Essa condição representa uma importante mudança para os empreendimentos da agricultura familiar, em relação ao Sistema anterior, que impedia o comércio fora do respectivo território de atuação dos SIM (município) e do SIE (estado). Outro aspecto é sobre o trâmite para aprovação e registro dos projetos agroindustriais, que com a descentralização do serviço de inspeção tende a ser mais rápida. Para os consumidores, existe um reflexo positivo: tem-se o fortalecimento do foco no controle da qualidade higienicossanitária, aumentando a segurança dos alimentos comercializados.

Portanto, o SUASA pode ser entendido como um instrumento facilitador para os consumidores que queiram valorizar os produtos de origem local, sem risco à saúde e ao meio ambiente, e que tenham origem na agricultura familiar. Tal condição fortalece a economia dos municípios, abrindo espaço para a integração entre os mesmos, incentivando o desenvolvimento local, a reorganização dos territórios e, por consequência, fomenta a implantação de novos empreendimentos agroindústrias de pequeno porte, aumentando, também, a arrecadação de tributos nos municípios.

Em última análise o SUASA, bem como a regulamentação do selo Arte, assim como outros Sistemas de equivalência que reproduziram a mesma lógica no âmbito estadual, tal como, por exemplo, o SUSAF no Rio Grande do Sul (Sistema Unificado de Sanidade Agroindustrial, Artesanal e de Pequeno Porte no RS), criado pela Lei 13.285 em 2012, vem a tentar sanar as desigualdades no acesso às cadeias produtivas, enfatizando o conceito de “inclusão sanitária produtiva”, onde a ênfase está voltada às boas práticas de fabricação e autocontroles necessários, para garantia da qualidade e inocuidade do produto final, minimizando o impacto das questões estruturais, as quais reproduzem a lógica de uma indústria de larga escala (Cruz e Schneider, 2010).

Nesse sentido, o SUASA dialoga com o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) buscando respeitar as especificidades regionais de produtos e suas diferentes escalas de produção, assim como suas particularidades de fabricação. Neste cenário, estados e municípios poderão ditar normas específicas para a pequena agroindústria, sem fugir do foco que é a qualidade sanitária. Todavia, a adesão dos municípios e estados é voluntária, o que faz com que ela seja limitada até o momento.

Esse movimento governamental é positivo porque indica uma ampliação da compreensão que o estado tem de seu papel em promover a inclusão sanitária produtiva. A proposta de equivalência sanitária busca aumentar o acesso a produtos não apenas seguros do ponto de vista microbiológico; mas, também, volta-se ao complexo conceito de alimentos saudáveis e adequados que subentende que alimentos seguros também devam sê-lo do ponto de vista da contaminação química e do equilíbrio nutricional, capazes de promover a saúde social e ambiental, conectados com a cultural local e promotores do saber fazer inerente aos agricultores familiares.

Neste ponto, a qualidade transcende os requisitos higienicossanitários e tecnológicos e abarca em seu escopo a contaminação química, o equilíbrio nutricional, o frescor, o sabor, a diversidade, capazes de promover a saúde social e ambiental, conectada com a cultural local, promovendo a resiliência econômica de agricultores (as) familiares (Lang, 2017).

Frente ao exposto, espera-se ter contribuído para compreensão acerca da complexidade e transversalidade intrínseca à legislação sanitária dos produtos de origem animal, esclarecendo os principais aspectos no arcabouço legal vigente, bem como acenando para as recentes alterações em sua regulamentação, as quais dialogam, principalmente, com a inclusão sanitária produtiva dos empreendimentos de pequeno porte (escala de produção não industrial) e com o aumento da responsabilidade sobre a qualidade dos alimentos produzidos por parte de quem o fabrica, sendo este o responsável pelo seu zelo e, portanto, pela gestão dos autocontroles inerentes à garantia da inocuidade do produto final.

 

Referências

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BRASIL, Decreto ° 5.471, de 30 março de 2006. Regulamenta os arts. 27-A, 28-A e 29-A da Lei no 8.171, de 17 de janeiro de 1991, organiza o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária, e dá outras providências.

BRASIL. Decreto no 9.013, de 29 de março 2017. Regulamenta a Lei no 1.283, de 18 de dezembro de 1950, e a Lei no 7.889, de 23 de novembro de 1989, que dispõem sobre o regulamento da inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal.

BRASIL, Decreto n° 10.468, de 18 de agosto de 2020. Altera o Decreto no 9.013, de 29 de março de 2017, que regulamenta a Lei no 1.283, de 18 de dezembro de 1950, e a Lei no 7.889, de 23 de novembro de 1989, que dispõem sobre o regulamento da inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal.

BRASIL, Decreto n° 9.918, de 18 de julho de 2019. Regulamenta o art. 10-A da Lei no 1.283, de 18 de dezembro de 1950, que dispõe sobre o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal.

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PEREZ, F. C.; WIZNIEWSKY, J. G.; GODOY, C. M. T.; MORAES, C. S.; REYS, M. A. Agroindústrias familiares como estratégia de desenvolvimento para o Município de Santa Rosa / RS: o caso da legislação. Disponível em: http://www.sober.org.br/palestra/13/1082.pdf. Acesso em 03.10.16. Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. 47ͦ, 2009, Porto Alegre.

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