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Biofilme – Uma Comunidade Microbiológica

A vida em comunidade sob forma de biofilme, confere aos micro-organismos vantagens importantes para seu desenvolvimento, proliferação e manutenção de sua existência.
Lady scientist in microbiology laboratory working with E coli culture

Uma das definições de comunidade é: “Grupo de indivíduos que compartilham algo”. Este conceito costuma ser empregado tanto na ecologia quanto na sociologia e da mesma forma aplicamos na microbiologia.

A essa comunidade microbiológica definimos como: Biofilme.

O fato de os biofilmes serem construídos em sua maioria por uma diversidade de espécies traz um risco muito maior, porque espécies diferentes em um mesmo biofilme conferem maior proteção à comunidade, onde protegem umas às outras, devido às diferentes resistências que demonstram, por exemplo, a produtos químicos. Biofilmes são muito mais do que simplesmente células prisioneiras em um material aglutinante, são comunidades funcionais que podem ser encontradas em uma variedade imensa de tipos de materiais e locais. Substratos abióticos como madeira, vidro, borracha, aço inoxidável, plásticos, tubulações, membranas de osmose reversa, silos de armazenamento, solo, placas de pasteurizadores, mas também substratos bióticos como legumes, frutas, carne, ossos, são alguns exemplos de superfícies que de alguma maneira são “escolhidas” pelos micro-organismos. Sim, de alguma forma que ainda não se conhece muito bem, algumas superfícies são de preferência desses seres, sendo um assunto de muitas discussões e estudos. Alguns fatores e propriedades são apontados como influenciadores dessa adesão como pH, temperatura, hidrofobicidade, textura da superfície, compostos orgânicos, compostos inorgânicos e constituição nutricional.

Sua formação começa com pequenos depósitos de células planctônicas (forma livre) em superfícies adotadas como apropriadas, iniciando uma comunicação intercelular, originando um crescimento com uma síntese de polissacarídeo e a participação de proteínas e ácidos graxos. Quando aderidos nas superfícies, esses micro-organismos, passam a ser classificados como sésseis (forma fixa), iniciando a construção do biofilme.

Figura 1: Estágio de desenvolvimento do biofilme

Fonte: Adaptado de Monroe D (2007) Looking for Chinks in the Armor of Bacterial Biofilms. PLOS Biol. 5 (11): e 307 doi:10.1371/ Journal pbio 0050307.

A vida em comunidade sob forma de biofilme, confere a esses micro-organismos vantagens importantes para seu desenvolvimento, proliferação e manutenção de sua existência, e uma vez formado o biofilme, torna-se difícil o controle. No mínimo, três razões estão envolvidas na formação e na possibilidade de sobrevivência de suas células. Primeiro, o biofilme age como mecanismo de autodefesa microbiano, porque resiste a forças físicas e a penetração de moléculas, como por exemplo os antibióticos. Segundo, a permanência dos micro-organismos em um ambiente favorável com nutrientes em abundância ou com reposição constante. Terceiro, suas células vivem associadas, facilitando a comunicação intercelular e aumentando as oportunidades de continuidade das espécies.

Figura 2: Ciclo de vida do biofilme

Fonte: Fonte: Journal of Aging and Innovation

A composição dos biofilmes pode conter quase todos os tipos de micro-organismos que estejam sob condições convenientes. Contudo, nas indústrias alimentícias a maior frequência na produção de biofilme está com as bactérias, embora se saiba que umas apresentam maiores capacidades que outras.

Figura 3: Esquema da estrutura do biofilme: Modelo do Mosaico Heterogêneo

Fonte: Journal of Aging and Innovation

Os danos dos biofilmes à indústria de alimentos são atribuídos principalmente à qualidade dos produtos, podendo trazer graves consequências à saúde do consumidor, mas também à redução da vida útil de equipamentos e utensílios, aumentando as despesas com manutenções, substituições e ocorrendo perdas de ordem econômica, mas especialmente de saúde pública.

Figura 4: MicroAmbiental, 21/11/2019.

Figura 5: Crystalline Cleaning and Environmental Services.

Figura 6: Empresa Nanoclean. Misturador de aço inoxidável para mixer de chocolate branco em fábrica de chocolate.

Figura 7: Joline El-Chakhtoura (2018).

Figura 8: Dissertação de Mestrado da Faculdade de Engenharia Química de Campinas (maio, 2006).

Sensor para corte de peças indústria de usinagem no estado de São Paulo.

Os biofilmes bacterianos podem transmitir doenças às pessoas através dos alimentos contaminados, equipamentos e utensílios utilizados na fabricação de alimentos, surgindo por meio da liberação de toxinas, causando intoxicações e infecções individuais ou múltiplas.

Dentre as bactérias deteriorantes podemos dar destaque a Pseudomonas fragi, Pseudomonas fluorescens, Micrococcus sp, Enterococcus faecium. Além dessas, é necessário redobrar nossa atenção para aquelas com importância patogênica. Entender suas características clínicas e a capacidade de construir biofilmes em diversos tipos de materiais é muito colaborativo para seu controle. A exemplo dessa classe temos cinco importantes representantes patogênicos:

Bacillus cereus

Família Bacillaceae, espécie formadora de esporos, que funcionam como uma capa protetora, conferindo resistência ao calor, a compostos químicos e até mesmo a uma possível escassez de nutrientes. Ou seja, a condições desfavoráveis à bactéria. Produzem toxinas e têm capacidade de crescer em diferentes ambientes, em uma faixa de temperatura que pode variar de 4ºC a 50ºC, sobrevivendo, por exemplo, a processos de pasteurização industrial. Toda essa estratégia se deve justamente à produção de endósporo (esporo), que aumenta a dificuldade na remoção dos biofilmes por eles produzidos, durante os procedimentos de limpeza. Isso acaba favorecendo e criando uma ótima condição de fixação de outros micro-organismos que não são tão resistentes assim. Células móveis, com grande atividade flagelar, permitem a migração para longas distâncias dentro de uma fábrica, possibilitando sua chegada aos lotes que serão distribuídos aos consumidores, por exemplo. A intoxicação causada por esses micro-organismos pode provocar a Síndrome Diarreica (diarreia volumosa) e a Síndrome Emética (vômitos volumosos). O Bacillus cereus é uma espécie microbiana principalmente encontrada em plantas fabris de laticínios e bebidas, em suas superfícies submersas, como os tanques e tubulações de aço inoxidável. Também nos alimentos de forma geral, mas principalmente nos cereais, alimentos processados como saladas, produtos cárneos, purê de batatas e arroz cozido, este micro-organismo pode levar à “Síndrome do arroz frito”. Bactéria que aponta nossa atenção para o importante monitoramento aos processos e produtos que mesmo em alta temperatura estão vulneráveis a um possível “ataque”.

Escherichia coli Enterohemorrágica

Considerada como um indicador de potabilidade da água e da qualidade dos alimentos, a Escherichia coli é um representante muito importante ao controle higiênico-sanitário. Sua transmissão pode acontecer através da própria água, bem como pelas frutas, legumes, leite cru e também da carne fresca. Os cuidados que os setores de alimentos devem ter para evitar a contaminação, vai desde a pré-colheita, ou seja, na água usada para cultivar os vegetais, até a sua lavagem. Também no processamento de legumes, verduras e na temperatura de armazenamento, entre outros. Micro-organismo comum na microflora dos humanos, onde a maioria de suas estirpes são inócuas à vida humana, porém alguns sorotipos podem causar sérias intoxicações alimentares ao homem. Composta por 6 sorogrupos: E. coli Enteropatogênica Clássica (EPEC), E. coli Enteroinvasiva (EIEC), E. coli Enteroagregativa (EAEC), E. coli de Aderência Difusa (DAEC), E. coli Enterotoxigênica (ETEC), E. coli Enterohemorrágica (STEC). A Escherichia coli enterohemorrágica (a O157:H7) é um sorotipo de grande importância para a saúde pública. Sua alta resistência a condições de estresse como temperatura, pressão e agentes químicos, lhe confere uma capacidade de resistir a métodos de controle. Superfícies como aço inoxidável, teflon, poliestireno, PVC, além de planos bióticos, são comuns para esta adesão. A possibilidade de aderir a materiais com características hidrofóbicas, como polipropileno, é bem baixa ou praticamente nula na formação de seus biofilmes. Para o sorotipo O157:H7 as chances são bem maiores em materiais compostos por vidro borossilicato e aço inoxidável. A existência de flagelo e fímbria potencializa e muito na adesão, possibilitando a disseminação desses micro-organismos nas superfícies, sejam elas bióticas ou abióticas, trazendo consigo um grande risco em todos os perímetros produtivos da fábrica. Liberam toxinas (Shiga) altamente potentes, que causam implacáveis danos às células epiteliais do intestino delgado, e dependendo do paciente, pode levar à morte, por causarem gastroenterite hemorrágica, levando a Síndrome Hemolítica Urêmica. A grande questão dessa cepa em plantas fabris é que, mesmo biofilme com baixo nível de contaminação em UFC (Unidade Formadora de Colônias) é capaz de uma potente dose infecciosa. Ou seja, se pode ter uma pequena contagem de colônias de bactérias, mas com uma enorme chance de infecção.

Listeria monocytogenes

Micro-organismo emergente pertencente à família Listeriaceae, com importante capacidade de aderência a materiais como prolipropileno, aço, borracha e vidro, e um poder de resistência muito grande, que lhe atribui uma “habilidade/versatilidade” quando expostos ao estresse. Dotado de flagelos que lhe propiciam uma ótima mobilidade em baixas temperaturas, conseguem crescer em uma larga faixa de temperatura que vai de – 0,4ºC a 45ºC, sobrevivendo a longos períodos em alimentos congelados. Consegue se manter em pH baixo, em concentrações de sal           a um nível superior a 10%, é anaeróbica facultativa (consegue crescer na presença e ausência de oxigênio). Traz um fator especialmente importante e preocupante para a indústria de alimentos, apesar de uma baixa incidência anual, porém com um alto fator de mortalidade que varia entre 20% e 30%. Em grupos especiais de indivíduos como os idosos, crianças e imunocomprometidos, pode levá-los a septicemia ou meningite bacteriana e, nas mulheres grávidas, ao aborto, pois a bactéria consegue atravessar a barreira placentária, causando a morte do feto. Importante ficar atento a alguns sintomas que a Listeriose pode apresentar como severa gastroenterite, febre, náuseas, dores musculares, rigidez de nuca e confusão mental. Cuidados especiais devem ser dados ao plano de monitoramento sanitário das instalações, utensílios e operadores, bem como aos alimentos, que são mais propensos a transmissão desse microrganismo, dentre eles: frutos do mar, laticínios, carnes, frutas, produtos prontos para o consumo, leite e derivados, sorvetes, produtos produzidos com leite cru, frutas cristalizadas, legumes congelados e leite não pasteurizado.

Salmonella entérica

Representante de relevância na saúde pública, pertencente à família Enterobacteriaceae e que não faz parte do grupo dos coliformes. Composta por seis subespécies e, dependendo do seu sorotipo, podem causar duas importantes patologias: a salmonelose não tifoide e a febre tifoide, esta apresenta um maior índice de mortalidade se comparada a não tifoide. Sintomas como náuseas, vômitos, febre, diarreia e dor abdominal podem ter início 6 horas após o consumo do alimento contaminado, levando alguns dias e diminuindo em uma semana. Sua presença está associada a carnes, aves, ovos, leite e produtos lácteos, pescados, temperos, molhos para saladas não pasteurizados, misturas de bolo e sobremesas que contêm ovo cru. A formação de seus biofilmes em superfícies de aço inoxidável é bem positiva do ponto de vista de aderência, pois pode chegar a longos períodos, passando até mesmo de um ano de fixação. Daí o perigo na disseminação pela fábrica e a contaminação de muitos lotes.

Staphylococcus aureus

Tem no homem um dos seus principais reservatórios. Oportunista, produtora de toxina, é uma espécie capaz de se multiplicar nas membranas das mucosas e na pele, refletindo um enorme problema para os processos alimentícios, por causa de seus manipuladores de alimentos. Temos como doenças comuns relacionadas a este patógeno, as infecções cutâneas (impetigos e terçóis), infecções profundas (bacteremia, periocardite, endocardite, pneumonia, sepse), toxinfecções (Síndrome do Choque Tóxico e Síndrome da Pele Escaldada) e intoxicações alimentares (MRSA). Diarreia e vômito são sintomas de sua contaminação. Alimentos onde existe uma reduzida atividade de água e elevado teor de açúcar e sal são ideais para o desenvolvimento deste microrganismo. Com sua “versatilidade”, são capazes de formar biofilmes em estruturas biótica e abióticas. Por toda a extensão de um processo produtivo de alimentos, conhecer sobre as estruturas é muito importante para a tratativa de remoção, pois vai depender de que substrato estamos falando.

Uma grande diversidade de novas tecnologias vem sendo pesquisadas e desenvolvidas, com o intuito de reduzir os impactos causados pelos biofilmes. Pesquisas envolvendo biotecnologia, que sejam capazes de acompanhar a adesão, crescimento e remoção desses micro-organismos nas fábricas alimentícias, reduzindo e colaborando nas manutenções dessas plantas. Além dos métodos mais conhecidos como os tratamentos físicos e químicos, esses agora também contam com aliados inovadores, como por exemplo: Ruptura Enzimática (detergentes industriais); as Nanopartículas (NPs); Biosurfactantes (compostos naturais); Bacteriófagos (fagos); Bacteriocinas; Quorum Sensing (QS); Óleos essenciais; Alta Pressão Hidrostática; Plasma Térmico e Fotocatálise. É importante que a escolha de qualquer que seja o tipo de controle, deva estar relacionado ao custo-benefício perante ao processo fabril, possibilitando que qualidade e economia andem juntas.

Compreender o conceito de biofilme, sua composição, sua formação, aliados a um sistema de qualidade robusto, com o uso de suas ferramentas e as Boas Práticas de Fabricação é essencial para a promoção de estratégias de controle, permanentes a qualidade microbiológica e a prática higiênico-sanitária para que sejam produzidos alimentos seguros.

 

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