Futuro da rotulagem de glúten: discussões regulatórias em pauta

No dia 29 de abril de 2025, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) realizou um Diálogo Setorial Virtual sobre Revisão da Rotulagem de Alimentos Alergênicos, reunindo mais de oitocentos (800) participantes entre consultores de alimentos, representantes do setor regulado, profissionais de saúde, associações de pacientes, entre outros, com o objetivo de discutir os principais pontos que podem ser aperfeiçoados no processo de revisão da regulação da rotulagem de alimentos alergênicos e como a Gerência-Geral de Alimentos (GGALI) conduzirá a intervenção. 

Este artigo está estruturado em dois blocos temáticos: (1) um breve histórico sobre os desafios da rotulagem de glúten e (2) os principais aspectos regulatórios atuais sobre o tema. O objetivo é oferecer um resumo técnico para profissionais das áreas de alimentos e saúde pública, além de contribuir para o debate qualificado sobre os rumos da rotulagem no Brasil. 

Bloco 1 – Breve contextualização dos desafios da rotulagem do glúten 

Inicialmente, a obrigatoriedade de rotulagem sobre a presença de glúten em alimentos industrializados foi instituída pela Lei nº 8.543/1992, objetivando proteger indivíduos com doença celíaca, condição autoimune desencadeada pela ingestão de glúten. Para unificar a aplicação dessa exigência, a Anvisa publicou a RDC nº 40/2002, determinando que alimentos que contivessem trigo, aveia, cevada, malte, centeio ou seus derivados deveriam exibir a declaração “CONTÉM GLÚTEN” nos rótulos. 

Posteriormente, a Lei nº 10.674/2003 revogou essas normas e estabeleceu a obrigatoriedade das expressões “contém Glúten” ou “não contém Glúten”, conforme o caso. No entanto, a nova legislação não definiu critérios técnicos como limites máximos de glúten para uso da declaração “não contém Glúten”, tampouco parâmetros de legibilidade para essas informações nos rótulos dos alimentos. 

Durante o processo regulatório da rotulagem de alimentos alergênicos em 2014, a Anvisa chegou a propor o limite de 20 mg/kg de glúten como referência técnica para essa declaração, com base no Padrão para Alimentos para Fins Especiais para Pessoas Intolerantes ao Glúten (CXS 118-1979) do Codex Alimentarius.  Entretanto, após a consulta pública nº 29/2014, observou-se que pessoas com alergia ao trigo ou a outros cereais com glúten podem apresentar reações mesmo a níveis significativamente inferiores aos tolerados por celíacos. 

Além disso, o fato de a Lei nº 10.674/2003 não definir limites numéricos, somado aos conflitos com a Portaria SVS/MS nº 29/1998 — que exige a ausência total da proteína em alimentos formulados para dietas com restrição — gerou insegurança jurídica. Outro ponto crítico foi a dificuldade de harmonização com os demais países do Mercosul, que não exigem a declaração da ausência de glúten. Diante desse cenário, a Anvisa optou por retirar a regulamentação sobre a rotulagem de glúten do escopo da norma de alergênicos, adiando sua definição para um momento mais oportuno. Para orientar o setor regulado, a GGALI incluiu o tema em seu documento de perguntas e respostas sobre rotulagem de alergênicos. 

Diante da relevância do tema para a saúde do consumidor, a GGALI incorporou a discussão sobre rotulagem de glúten ao item 3.23 da Agenda Regulatória 2024/2025, sugerindo a adoção dos valores de referência recomendados atualmente pelo Codex Alimentarius. Para subsidiar a participação dos interessados no diálogo setorial, a Anvisa elaborou um documento de base (disponível nas referências) sobre a revisão da rotulagem de alimentos alergênicos. 

Bloco 2 – Discussões regulatórias apontadas no diálogo setorial 

O “Diálogo Setorial Virtual sobre Revisão da Rotulagem de Alimentos Alergênicos” teve como um dos temas a rotulagem de glúten. A discussão concentrou-se na proposta de norma que estabeleça limite quantitativo, seguro e padronizado, para declaração da informação sobre ausência de glúten nos alimentos, algo que ainda não existe formalmente na legislação brasileira e que gera questionamentos por parte do setor produtivo, consumidores, sociedade civil, Ministério da Agricultura e Pecuária – MAPA e integrantes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária – SNVS. 

Uma interpretação legal coerente é a de que para se rotular um alimento com o “não contém Glúten”, seria necessária a completa ausência de glúten, já que a Lei nº 10.674/2003 não definiu limite para a declaração da advertência. Com isso, a GGALI posicionou-se no sentido de que não existiria respaldo legal para a adoção do limite de 20 mg de glúten por quilo (20 ppm) como critério para rotulagem. Nessa perspectiva, um alimento só deveria ser classificado como “não contém Glúten” quando a análise laboratorial não identificasse a presença dessa proteína. Em contrapartida, o Codex Alimentarius, que serve de referência internacional, estabeleceu o limite de 20 mg/kg para se usar a declaração de ausência de glúten no rótulo. No entanto, durante o diálogo setorial promovido pela Anvisa, representantes dos celíacos no Brasil alegaram que esse valor poderia ser insuficiente para proteger indivíduos mais sensíveis. 

Movimentos organizados da sociedade civil, como o Grupo de Celíacos do Piauí, relataram casos reais de reações ao glúten mesmo com produtos que seguiam o padrão internacional. Essas experiências geraram uma mobilização para a adoção de limites mais rígidos, como 10 ppm ou até 5 ppm. A principal motivação seria garantir segurança para quem tem reações severas, mesmo diante de vestígios mínimos da proteína. 

Por outro lado, a indústria de alimentos destacou os obstáculos técnicos e econômicos que essas mudanças poderiam gerar. Reduzir o limite para 5 ou 10 ppm exige tecnologia de purificação avançada e custos de produção mais altos, o que nem sempre está disponível no Brasil. No caso da aveia, por exemplo, um representante do setor regulado, informou que a contaminação cruzada com trigo nas lavouras é quase inevitável sem medidas adicionais como importação ou descontaminação intensiva. Além disso, empresas que exportam para diferentes mercados apontam a dificuldade de lidar com normas variadas. A coexistência de múltiplos padrões — 5 ppm, 10 ppm, 20 ppm — gera instabilidade regulatória e impacta diretamente a competitividade da produção brasileira. A indústria, portanto, defende que o país adote um padrão nacional claro e tecnicamente viável. 

Até então, a proposta da Anvisa para regulamentar o tema tem sido utilizar os valores de referência recomendados pelo Codex Alimentarius, a fim de alinhar a norma brasileira com o cenário internacional, reduzir barreiras comerciais e oferecer um ponto de partida objetivo. A agência, no entanto, sinalizou que está aberta ao diálogo com a sociedade e que poderá rever esse limite no futuro com base em novas evidências científicas. 

Outro ponto discutido foi a criação da categoria “baixo teor de glúten”, já prevista pelo Codex. Essa faixa intermediária — superior a 20 mg/kg e até 100 mg/kg no total, com base no alimento como vendido ou distribuído ao consumidor — poderia ser útil para pessoas com sensibilidade não celíaca, ampliando as opções no mercado. A proposta ainda está em avaliação, mas foi bem recebida por diversos setores, pois traz mais transparência e liberdade de escolha ao consumidor. 

Para os consumidores celíacos, especialmente, a nova regulamentação poderia representar mais clareza sobre o que realmente “não contém glúten”, permitindo decisões alimentares mais seguras e conscientes. Já para a indústria, a expectativa é que o novo marco regulatório traga previsibilidade e estimule melhorias tecnológicas, controles laboratoriais e investimentos em qualidade. 

Conclui-se, portanto, que a Anvisa reiterou a revisão da rotulagem de alimentos como prioridade estratégica. Além de organizar novas etapas de participação social, a agência prevê a abertura de consulta pública ainda em 2025, antes de apresentar a nova regulamentação. A construção de um ambiente regulatório robusto, claro e alinhado com os avanços científicos é essencial não apenas para garantir o direito à informação, mas também para promover segurança, reduzir riscos à saúde e fortalecer a confiança do consumidor. Nesse cenário, a rotulagem obrigatória de glúten surge como um instrumento fundamental de proteção, transparência e inclusão, beneficiando consumidores e o setor produtivo. 

Referência bibliográfica

Link do vídeo do Diálogo setorial Virtual da ANVISA : https://www.youtube.com/watch?v=tQNy0yIMjnY.   Acesso em 9 mai. 2025. 

Link do documento orientativo: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2025/dialogo-setorial-virtual-aborda-revisao-da-rotulagem-de-alimentos-alergenicos/Documentodebasesobrerotulagemdealergnicos.pdf. Acesso em 9 mai. 2025.

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