É inegável que a batalha contra o Covid-19 e o enfrentamento da pandemia fez com que muitos setores da economia passassem por um período de reflexão. Com o setor de alimentos, não foi diferente. De frente a este momento, o setor compreendeu a real importância da Cultura da Segurança dos Alimentos na produção de produtos de qualidade e que sejam seguros para o consumidor final. Por isso, durante o período mais severo de enfrentamento da pandemia, profissionais de diversos setores da cadeia produtiva se mobilizaram na produção de materiais educativos, que iam desde o contexto microbiológico até as tão usuais e não menos importantes Boas Práticas de Fabricação (BPF).
Confesso que, ao perceber o momento de consciência ao qual o setor estava se direcionando, fiquei empolgado. Qualquer profissional que olhar atentamente vai perceber o quão secundário aos olhos de proprietários e responsáveis pela grande maioria dos estabelecimentos de alimentação é a Cultura da Segurança dos Alimentos. Desde que decidi atuar no ramo de alimentação e percebi esse fato, uma pergunta me ocorreu: “Por que essa cultura sempre vem em segundo, terceiro, quarto ou quinto plano na visão dos responsáveis?”. Seria por revanchismo profissional, a eterna guerra de egos existente entre os profissionais envolvidos na parte final da cadeia produtiva? Pura sobrevivência empresarial, o tema perderia para a eterna luta “contas a pagar x receita”? Ou a falta de mão de obra qualificada?
Em meio a farta oferta de webinars e lives, das quais eu tive a oportunidade de participar de inúmeras, eu me dei conta que em praticamente nenhuma havia um sócio proprietário, gestor, chef de cozinha ou qualquer outro que atue na parte final da cadeia de produção de alimentos envolvidos nessas produções. Isto acendeu uma luz de alerta sobre a qual eu gostaria de compartilhar com vocês no decorrer deste texto.
Partindo do princípio de que a alma da Cultura da Segurança dos Alimentos é a cultura, devemos levar muito em consideração o entendimento e a importância desse termo, pois ela rege todo o conjunto de ações e padrões de uma sociedade. Sendo ela profissional ou não, uma prova incontestável dessa influência são alimentos Kosher, cujo a produção deve seguir rigorosas regras de produção descritos na Torá, livro sagrado do Judaísmo. Outro exemplo é o veganismo, praticado por adeptos de religiões derivadas do Hinduísmo, entre outras condutas alimentares influenciadas por culturas religiosas. Apesar disso, essas influências podem provir não somente de culturas religiosas, mas também por uma cultura territorial/geográfica, política, filosófica, entre outras manifestações existentes. O fato é que: para se estabelecer ou modificar uma cultura é necessário tempo, muito engajamento e comprometimento das partes envolvidas. Na cadeia da produção de alimentos não poderia ser diferente. Para reforçar o meu ponto de vista, vou citar um trecho do site Food Safety Brazil:
“Nos últimos dez anos, as publicações de CSA vêm ganhando visibilidade principalmente na indústria de alimentos, ao discutir diferentes dimensões e elementos. Entretanto, a cadeia produtiva é extensa, linear e a garantia de alimentos seguros é uma preocupação não só na indústria, mas em todos os elos até o consumidor.” (ZANIN; STEDEFELDT, 2020)
Através da imagem abaixo podemos observar que existem diversos setores envolvidos na produção daquele prato feito que comemos no restaurante próximo ao nosso local de trabalho. Esses setores são involuntariamente esquecidos pelas mentes pensantes que desenvolvem e implantam ferramentas de controle de qualidade e prevenção na produção, sem se dar conta que se o ajudante do cozinheiro deve estar envolvido com a Cultura da Segurança dos Alimentos. Se não, ele comprometerá o trabalho de inúmeros profissionais pelo simples fato de contaminar o alimento devido à elementos esperados da Cultura de Segurança de Alimentos que não possui.
Figura 1 – Cadeia da produção de alimentos
Vivi um caso similar em uma consultoria que prestei há alguns anos na cozinha de um hotel na grande São Paulo, onde a cozinheira do local dizia ter 15 anos de experiência, dos quais trabalhou mais de 10 em um restaurante tradicional. Ela tinha dois hábitos extremamente perigosos para a inocuidade dos alimentos servidos: o primeiro estava mais relacionado ao planejamento – ela sempre fazia muito mais comida do que a demanda do dia – e o segundo, que quase me fez desmaiar quando descobri, era o de colocar as sobras de alimentos do dia anterior aos alimentos produzidos no dia, prática habitual principalmente com o arroz cozido. Em um dos meus debates com ela, eu disse que provavelmente ela estaria servindo arroz feito há uns 10 dias para o cliente, já que ela sempre colocava as sobras de arroz no arroz novo. Infelizmente, descobri em futuro não muito distante dessa consultoria que essa é uma prática recorrente em cozinhas profissionais. Hoje o hotel e o restaurante não funcionam mais. Ou seja, o importante é que, além de ser o possível causador de uma Doença Transmitida por Alimentos (DTA), o manipulador que não demonstra comportamento maduro relacionado a Cultura de Segurança dos Alimentos pode jogar por terra todo o trabalho e comprometimento com o produto final do produtor, do engenheiro agrônomo ou veterinário, do armazém, da empresa de transporte, do químico, dos engenheiros de alimentos, entre tantas classes profissionais contidas na cadeia ilustrada acima (Figura 1).
Esta situação pode ser comprovada através de uma leitura rápida dos dados apresentados pelo documento produzido pelo Ministério da Saúde em 2018, “Surtos de Doenças Transmitidas por Alimentos no Brasil”, onde reforçarei dois dados relevantes que apontam para o entendimento até aqui apresentado.
Segundo o levantamento, mais de 50% dos surtos de DTA são provenientes de contaminações ocorridas nas residências e nos restaurantes, ou seja, longe de ambientes industriais.
Figura 3 – Distribuição dos alimentos incriminados em surtos de DTA
Se levarmos em consideração os alimentos, que são os principais geradores de DTA, é possível perceber que em sua grande maioria a contaminação se dá na manipulação – ocorrida nas etapas próximas do consumo. Por dados como esse que fica fácil perceber que o trabalho de propagação da Cultura de Segurança de Alimentos não atinge todas as áreas da cadeia.
Antes de escrever este texto eu fiz uma pergunta em grupos de profissionais da cozinha dos quais eu participo: “o que você entende por Cultura da Segurança dos Alimentos?”. Como já era esperado, a grande maioria dos profissionais não sabe o verdadeiro sentido desse termo, e da importância no contexto da produção e da qualidade dos alimentos.
Antes de terminar, eu gostaria de deixar um desafio a todos os profissionais que estão engajados em transmitir a real Cultura da Segurança dos Alimentos: na próxima live, webinar ou evento, convide um chef de cozinha, um confeiteiro, um ajudante ou um empresário para participar. Vamos nos despir de todo o ego, revanchismo e pensamentos que possam limitar a abrangência dessa mensagem, pois um dos pilares da adesão à cultura é a inclusão. Para que essa engrenagem produtiva funcione corretamente e de forma plena, todos os profissionais da cadeia precisam estar envolvidos. Que esse novo momento no qual estamos entrando seja o melhor de todos. Um grande abraço e sucesso a você comprometido com essa missão.
Referências:
ZANIN, Laís Mariano; STEDEFELDT, Elke. Cultura de Segurança dos Alimentos: um fenômeno que pode ser transformado! 2020.
Surtos de Doenças Transmitidas por Alimentos no Brasil – Ministério da Saúde – Janeiro – 2018