A evolução da qualidade nas indústrias de alimentos percorreu caminhos que vão desde a produção artesanal, cujo foco era exclusivamente o atendimento aos anseios do consumidor, com a produção mais individualizada, sem padrões previamente definidos, até a revolução industrial, que possibilitou a produção em larga escala, com maior oferta de produtos, a preços mais acessíveis.
Um produto ou serviço de qualidade, conforme Campos, 1999, é aquele que atende perfeitamente, de forma confiável, acessível, segura e no tempo certo às necessidades do cliente.
A ampliação da produção tornou os produtos mais acessíveis e impulsionou o estabelecimento de Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade, como forma de padronização dos produtos promovendo um referencial para a qualidade, possibilitando sua caraterização, ou seja, estabelecendo a qualidade intrínseca e quantificável.
Neste processo evolutivo, no contexto das indústrias de alimentos, não apenas a padronização dos produtos e processos foi alterada, mas um componente de suma importância para a produção de alimentos seguros ganhou mais visibilidade e preocupação: o fator humano.
Definido pela Resolução RDC Nº 216, de 15 de setembro de 2004, da ANVISA, Brasil, 2004, como sendo qualquer pessoa que entra em contato direto com o alimento, o manipulador possui total envolvimento no processo produtivo, sendo de fundamental importância para a manutenção da segurança dos produtos, o que era desprezado durante a revolução industrial, cujo foco era a máxima produtividade.
Todos os funcionários diretamente envolvidos na produção de um alimento possuem um papel fundamental na manutenção da segurança e redução de riscos, ou seja, da probabilidade de presença de um perigo, seja ele de origem química, física ou microbiológica. Não obstante, as regulamentações que estabelecem práticas de qualidade higiênico-sanitária a serem implementada s nas indústrias de alimentos e serviços de alimentação, como a Portaria Nº 326 (BRASIL, 1997a), Portaria Nº 368 (BRASIL 1997b), Resolução RDC Nº 275 (BRASIL, 2002), Resolução RDC Nº 216 (BRASIL, 2004), Resolução RDC Nº 10 (BRASIL, 2003), definem critérios a serem seguidos para o controle da conduta e saúde dos funcionários, incluindo a obrigatoriedade de treinamentos, e procedimentos de monitoramento .
A Resolução RDC Nº 216 (BRASIL, 2004) por exemplo, exige que os manipuladores de alimentos sejam supervisionados e capacitados periodicamente em quesitos envolvendo higiene pessoal, manipulação higiênica dos alimentos e doenças transmitidas por alimentos. Além disso, é necessário que a capacitação seja comprovada, mediante documentação.
A conscientização dos manipuladores é mais que necessária, uma vez que eles podem contribuir diretamente com a inserção de perigos, sejam eles físicos como cabelos, unhas e acessórios, químicos como perfumes e aditivos químicos, e/ou microbiológicos diversos como Salmonella sp., Staphylococcus coagulase positiva, Escherichia coli, dentre outros.
Além da contaminação direta, os manipuladores e demais colaboradores podem contribuir indiretamente com a redução da qualidade dos alimentos, mediante atividades executadas de maneira inadequada.
A falta de higiene em utensílios, mãos e equipamentos, a contaminação cruzada entre alimentos crus e cozidos, o uso de alimentos impróprios e a exposição prolongada dos alimentos a temperaturas inadequadas, são elementos que propiciam a multiplicação de microrganismos, colocando em perigo a saúde dos consumidores (SANTINI; SEIXAS 2016), podendo ser evitadas, quando o manipulador possui treinamento e conscientização da importância da execução correta das atividades para a segurança dos alimentos.
Assim, considerando a importância dos funcionários, sobretudo dos manipuladores de alimentos, o treinamento e a conscientização sobre os problemas de saúde pública advindos do comportamento pessoal, tornam-se um requisito muito importante, para garantir a segurança dos alimentos, conforme indicado pelo Codex Alimentarius (FAO, 2023) e preconizados pelas Portarias Nº 326 (BRASIL, 1997a) e Nº 368 (BRASIL, 1997b), que estabelecem os requisitos relacionados às Boas Práticas de Fabricação.
Adicionalmente a isto, os funcionários podem ser motivados a promover a adulteração intencional dos alimentos, além de serem os responsáveis pela maioria dos parâmetros de monitoramento , dos quais dependem o controle da segurança dos alimentos produzidos.
A avaliação do clima organizacional da empresa e a satisfação pessoal dos funcionários, também têm sido considerados de primordial importância para a implantação de programas, como food defense, definido pela Global Food Safety Initiative (GFSI) como o processo para garantir a segurança de alimentos e bebidas, de todas as formas de ataques maliciosos intencionais, incluindo ataques motivados ideologicamente, levando a contaminação (GFSI, 2017).
A defesa dos alimentos contra a adulteração intencional é um dos requisitos adicionais para a obtenção da certificação dos sistemas de gestão de segurança de alimentos , como a certificação pelo Esquema FSSC 22000 (FSSC, 2022)
De acordo com Romero, 2017, os funcionários podem constituir-se em uma das causas principais de contaminação intencional, sendo de vital importância a avaliação do pessoal envolvido com a empresa. Eles podem ser motivados por questões religiosas, episódios de raiva, problemas pessoais, situações de desgosto com políticas vinculadas à empresa ou extorsões com fim de obter ganho econômico. A entrada de pessoal desconhecido, a condução de visitantes sem vigilância, contratação de terceiros para algumas funções, podem também representar uma ameaça.
Germano; Germano, 2013, consideram que a preocupação com a capacitação dos colaboradores influencia diretamente o clima organizacional, pois a pessoa competente age com confiança, interage com seus colegas e superiores, respeita fornecedores e clientes, está comprometida com a qualidade dos produtos e serviços e, em se tratando da área de alimentos, tem como principal objetivo a inocuidade dos produtos.
De forma geral, conforme apresentado a seguir, as regulamentações compreendem ações voltadas para os colaboradores, de forma a minimizar os problemas advindos da manipulação incorreta, que produzem efeito direto sobre a segurança dos alimentos processados.
Dentre requisitos estabelecidos na Resolução RDC Nº 216 (BRASIL, 2004) e que deverão ser atendidos pelos manipuladores de alimentos destacam-se:
– Os cabelos precisam estar presos e protegidos por redes, toucas ou outro acessório apropriado para esse fim, não sendo permitido o uso de barba;
– As unhas devem estar curtas e sem esmalte ou base;
– Durante a manipulação, devem ser retirados todos os objetos de adorno pessoal e a maquiagem;
– O controle da saúde dos manipuladores deve ser registrado e realizado de acordo com a legislação específica; – Os manipuladores deverão possuir asseio pessoal, apresentando-se com uniformes compatíveis à atividade, conservados e limpos;
– Os uniformes devem ser trocados, no mínimo, diariamente e usados exclusivamente nas dependências internas do estabelecimento.
– As roupas e os objetos pessoais devem ser guardados em local específico e reservado para esse fim;
– As mãos devem ser cuidadosamente lavadas ao chegar ao trabalho, antes e após manipular alimentos, após qualquer interrupção do serviço, após tocar materiais contaminados, após usar os sanitários e sempre que se fizer necessário;
– Não devem fumar, falar desnecessariamente, cantar, assobiar, espirrar, cuspir, tossir, comer, manipular dinheiro ou praticar outros atos que possam contaminar o alimento, durante o desempenho das atividades.
Além disso, os visitantes devem cumprir os requisitos de higiene e de saúde estabelecidos para os manipuladores, o que é de suma importância para manter a higiene e organização do ambiente produtivo.
De acordo com Codex Alimentarius (FAO,2023), os visitantes de empresas alimentícias, incluindo trabalhadores de manutenção, em particular nas áreas de fabricação, processamento ou manuseio de alimentos, devem, quando apropriado, ser instruídos e supervisionados, usar roupas de proteção e cumprir as demais disposições de higiene pessoal para o pessoal. Além disso, devem ser incentivados a relatar qualquer tipo de doença / lesão que possa representar problemas de contaminação cruzada.
A legislação preconiza ainda, a elaboração de um Procedimento Operacional Padronizado (POP) relacionado à higiene e saúde dos manipuladores, o qual deve contemplar, dentre outras questões, as etapas, a frequência e os princípios ativos usados na lavagem e antissepsia das mãos, assim como as medidas adotadas nos casos em que os manipuladores apresentem lesão nas mãos, sintomas de enfermidade ou suspeita de problema de saúde que possa comprometer a qualidade higiênico-sanitária dos alimentos.
Condições específicas podem ainda serem necessárias, principalmente quando os alimentos apresentam elevado risco de contaminação, como no caso de produtos prontos para consumo, sendo importante a manutenção de cuidados adicionais, principalmente no caso de visitantes, para que a segurança dos alimentos seja preservada.
Referências
- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância Sanitária. Portaria nº 326 de 30 de julho de 1997. Aprova o Regulamento Técnico; “Condições Higiênico Sanitárias e de Boas Práticas de Fabricação para Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos”. Diário Oficial da União, Poder Executivo; Brasília, DF, seção 1, 01 de agosto de 1997a.
- BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Defesa Agropecuária. Portaria nº 368, de 04 de setembro de 1997. Aprovar o Regulamento Técnico sobre as condições Higiênico Sanitárias e de Boas Práticas de Fabricação para Estabelecimentos Elaboradores/Industrializadores de Alimentos. Diário Oficial da União, Poder Executivo, seção 1, p. 19697, 08 de setembro de 1997b.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Agência nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n° 275, de 21 de Outubro de 2002. Dispõe sobre o Regulamento Técnico de Procedimentos Operacionais Padronizados aplicados aos Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos e a Lista de Verificação das Boas Práticas de Fabricação em Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, seção 1, p. 126, 23 de outubro de 2002.
- BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Defesa Agropecuária. Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal. Resolução nº 10, de 22 de maio de 2003. Institui o Programa Genérico de Procedimentos Padrão de Higiene Operacional – PPHO, a ser utilizado nos Estabelecimentos de Leite e Derivados que funcionam sob o regime de Inspeção Federal, como etapa preliminar e essencial dos Programas de Segurança Alimentar do tipo APPCC (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle). Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, seção 1, p. 4, 28 de maio de 2003.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n° 216, de 15 de setembro de 2004. Dispõe sobre regulamento técnico de boas 69 práticas para serviços de alimentação. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, seção 1, p. 25, 16 de setembro de 2004.
- CAMPOS, V. F. TQC – Controle da Qualidade Total (no estilo japonês). Belo Horizonte: Editora de Desenvolvimento Gerencial, 1999.230p.
- FAO and WHO, General Principles of Food Hygiene. Codex Alimentarius Code of Practice. No. CXC 1-1969, Codex Alimentarius Commission. Rome. 2023. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc6125en. Acessado em 23 de maio de 2024
- FSSC 22000. FOOD SAFETY SYSTEM CERTIFICATION 22000. FOOD SAFETY SYSTEM CERTIFICATION 22000, 2022
- GERMANO, P. M. L; GERMANO, M. I. S. Sistema de Gestão da Qualidade e Segurança dos Alimentos. 1Ed, Manole, 2013.
- GFSI, Benchmarking requirements, versão 7.2, 2017
- ROMERO, S.B. Defesa alimentar (Food Defense): avaliação e aplicação da ferramenta CARVER+Shock na indústria do leite no Brasil. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.74.2017.tde-23112017-090219. Acesso em 15 de maio de 2023.
- SANTINI, V.; SEIXAS, F. R. F. Avaliação das condições higiênico-sanitárias de restaurantes comerciais da cidade de Rolim de Moura–RO. Revista Científica da UNESC. v. 14, n. 1, p. 02-10, 2016