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Desafios no controle de alergênicos no setor food service

Uma reflexão aos profissionais de alimentos sobre o desenvolvimento de informações e controles seguros em serviços de alimentação.

A presença de alérgenos em determinados alimentos é uma realidade que coloca em prontidão todas aquelas pessoas que apresentam algum tipo de hipersensibilidade a tais substâncias. Esta situação afeta diretamente a vida de tais pessoas e também de seus familiares, que convivem solidariamente com as limitações impostas na alimentação, além de uma série de cuidados que precisam ser adotados.

Não há evidências históricas sobre quando os seres humanos começaram a apresentar alergias a alimentos, mas diversos estudos indicam que nas últimas três décadas têm aumentado desproporcionalmente os casos. Hoje se tem muito mais informações sobre os mecanismos que desencadeiam tais reações no organismo, quais são as substâncias, prevalência em certos grupos populacionais e se detectam diferentes sintomas que podem ser observados.

No campo regulatório, o direito de se conhecer a respeito da composição de alimentos que adveio com as obrigações da indicação de listas de ingredientes, tornou-se um marco para o público de pessoas que apresentam alergias. A partir daí, foi garantido um nível maior de informação e conferido a esse público um pouco mais de segurança ao consumir alimentos e conhecer seus ingredientes. No Brasil, o Código de Defesa do consumidor, publicado em 1990, já alertava que os consumidores precisavam ser informados de forma adequada sobre potenciais riscos à saúde que um produto possa oferecer. Somente em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução nº 26 que trata especificamente da rotulagem dos principais alimentos que causam alergias alimentares. Importante lembrar o papel fundamental do movimento “Põe no rótulo” (www.poenorotulo.com.br) que buscou sensibilizar e mobilizar agentes públicos para que tal resolução se transformasse realidade. Foi a primeira resolução que tratou especificamente a questão da presença de ingredientes com alérgenos em alimentos.

A resolução traz uma lista dos principais alimentos que causam alergias alimentares e, no caso de tais alimentos ou seus derivados fizerem parte da lista de ingredientes, torna-se obrigatório incluir tal informação nos rótulos, através de alertas padronizados. A resolução inclui alertas padronizados para situações onde haja um potencial risco de presença de alérgenos, como por exemplo, produtos que não contém alérgenos em sua composição, mas que são processados em ambientes e equipamentos que processam tais produtos e seus derivados (contaminação cruzada). Tudo isso, não deixa de ser um avanço para garantia da própria indústria, como também dos consumidores.

Porém a RDC nº 24 se aplica exclusivamente a alimentos embalados na ausência do consumidor. Ficam de fora os alimentos servidos no setor de serviços de alimentação – “food service”. E isso não é pouca coisa. O setor, também conhecido como “alimentação fora do lar” vem crescendo vertiginosamente, sendo que de 2008 a 2018, tal crescimento foi de 246% e hoje em dia é composto por aproximadamente 96 mil estabelecimentos. É cada vez mais comum, realizarmos muitos mais refeições fora de casa. Em 2018, o setor faturou cerca de 72 bilhões de reais. Isso ressalta a sua importância dentro do nosso cotidiano alimentar, prática essa que deveria também ser compartilhada pelas pessoas que apresentam alergias alimentares. É interessante notar que muitos dos casos clássicos relatados internacionalmente sobre alergias alimentares, se deram exatamente em restaurantes.

Como dito, embora não haja nenhuma resolução que deixe claro qual a responsabilidade do setor de food service com relação a alimentos que contém alérgenos, há alguns aspectos que devem ser considerados. O primeiro deles se refere aos movimentos que presenciamos no setor de alimentos em geral. Nichos como de alimentação vegetariana, alimentos sem glúten, alimentação vegana, alimentação orgânica, têm sido gradativamente assimilados por restaurantes e lanchonetes, inclusive com esses tipos de estabelecimentos sendo muitas vezes, precursores dos mesmos. Dito isso, a adoção de cozinhas “Allergen free” (livres de alérgenos) pode ser vista como uma possibilidade de atendimento a um nicho de mercado. Para os que não querem ser tão restritivos, podem optar por se tornarem inclusivos, e assim como redes de sanduíche que hoje também vendem saladas, podem incluir em seus cardápios, produtos que atendam a esse perfil e assim, “convidarem” pessoas com alergias alimentares a frequentarem seus estabelecimentos. E por fim, outra atitude é a de adotar programas de controle de alergênicos, sem alterações em cardápios, mas com a implementação de uma política de responsabilidade e de transparência, que leva em conta que a pessoa com alergia alimentar também pode ser sua cliente e se sentir mais segura ao se deparar com um cardápio informativo, pois saberá o que pode ou não consumir. São inúmeros os depoimentos comoventes de famílias que descrevem a alegria de parentes alérgicos, ao poderem frequentar um restaurante.

Bem, mas para os estabelecimentos que adotarem essas duas últimas políticas, temos um problema de convivência no mesmo ambiente, de alimentos que contém e dos que não contém ingredientes com alérgenos. Isso se configura em um grande desafio. A intenção desse artigo é exatamente levantar alguns pontos chaves que precisam ser pensados e provocar os profissionais de controle de qualidade. Eis os principais:

Variedade de alimentos – Em geral o setor de food service, principalmente restaurantes, trabalham com uma gama muito grande de pratos servidos. Em um restaurante “self-service” então, isso aumenta muito, pois para evitar a repetição dos cardápios, se oferta muita variedade. Tal variedade é um desafio em primeiro lugar porque temos não somente o trabalho de evitarmos contaminação cruzada de um, mas talvez de toda a lista de alérgenos. A variedade de pratos ou produtos se reflete ainda em uma necessidade de planejamento antecipado diário, para que as medidas adotas de controle sejam adaptadas a cada instante.

O amplo uso de ingredientes com alérgenos na culinária – Só pra citar alguns: leite, ovo e trigo. Alguém tem alguma receita que não vai um desses produtos ou seus derivados? A ampla utilização de tais produtos aumenta intensamente a possibilidade de contaminação cruzada, pois alguns desses ingredientes, dominam a cozinha. A sua substituição é difícil e no caso de farináceos, a dispersão é facilitada.

Variedade de ingredientes, troca de ingredientes e troca de fornecedores – Sobre variedade de ingredientes, vale a mesma linha de raciocínio apresentado para variedade de pratos. Mas diferentemente do setor industrial que em geral elege fornecedores, que acabam quase que se tornando fixos, o setor de food service apresenta uma rotatividade maior, com troca de marcas em função de preço, de uma semana para outra. De uma marca para outra de um ketchup, pode haver uma mudança completa dos alertas de alérgenos.

Espaços reduzidos – Dentre os pilares do Plano de Controle de Alérgenos podemos citar a segregação. A maioria do setor food service é composta por microempresas, muitas delas com cozinhas ou salas de preparo muito apertadas, que dificultam ou inviabilizam a separação no preparo de alimentos livres de alérgenos. Espaços reduzidos se traduzem em fluxo intenso de pessoas, de utensílios, que são um “prato cheio” para a contaminação cruzada por ingredientes com alérgenos. A segregação deve iniciar lá no almoxarifado e ir até o espaço destinado a produtos prontos. O espaço reduzido ainda repercute em um outro aspecto que é a impossibilidade de comportar certos equipamentos em duplicidade, o que seria ideal para um controle mais rígido.

Preparo concentrado de alimentos – Junto com o que foi apresentado anteriormente, outro grande problema é o preparo concentrado de alimentos. Na indústria, se preconiza, quando não é possível o estabelecimento de áreas livres e não livres de alérgenos, a possibilidade de processamento em momentos diferentes. Embora exista sim um planejamento e pré-preparo de algumas fases de elaboração dos alimentos, há grandes picos de concentração, que aumentam em muito, o risco de haver contaminação cruzada.

Equipes reduzidas e mal treinadas – Equipes reduzidas e mal treinadas tem impactos em todo o controle de qualidade de qualquer food service. Para o controle de alimentos alergênicos isso não é diferente. A intensidade de trabalho, desde em uma cozinha de um restaurante a la carte, até do chapeiro de uma hamburgueria, exige que as equipes sejam muito bem treinadas e que internalizem os cuidados relacionados ao controle de alérgenos, para que a execução de tais controles quase que surjam espontaneamente no dia-a-dia de suas atividades.

Disposição em buffets e o comportamento do consumidor – Sobre esse aspecto, nada melhor que um buffet em sistema self-service. Proximidade de produtos que não podem estar, e o consumidor que insiste em trocar a colher do tabule (que vai trigo) para pegar cenoura cozida. No buffet, a busca por opções que criem barreiras físicas reduzindo a contaminação entre pratos, estão entre as soluções. Mas o monitoramento do comportamento dos clientes é algo que precisa de muita sutileza e olhar atento. Afinal, ele é o seu cliente.

E por fim os garçons – Estes precisam ser ágeis, atenciosos, corteses, de raciocínio rápido, memória estupenda. São os “supermans” da linha de frente. E agora precisam incorporar mais algumas habilidades, estando preparados para dar respostas claras e precisas sobre a segurança de consumo aos clientes com alergias alimentares.

Como mencionado anteriormente, a intenção do texto é o de identificar alguns pontos críticos no controle de alérgenos no setor de food service e provocar a inteligência e a competência dos nossos profissionais da área de alimentos na busca de soluções. Afinal de contas, uma coisa é verdade, não podemos deixar as coisas, simplesmente como estão.

 

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS-ABIA. Congresso Internacional Food Service. Disponível em: https://www.abia.org.br/cfs2019/sobrecongresso.html Acesso em: 18 set 2020.

BRASIL. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução n. 26 de 02 de julho de 2015. Dispõe sobre os requisitos para rotulagem obrigatória dos principais alimentos que causam alergias alimentares. D.O.U 03 jul 2015.

INSTITUTO FOOD SERVICE BRASIL. Estabelecimentos. Disponível em: https://www.institutofoodservicebrasil.org.br/ Acesso em: 18 set 2020

SICHERER, S.H.; SAMPSON, H.A.. Food allergy: a review and update on epidemiology, pathogenesis, diagnosis, prevention, and managemente. J. Allergy Clin. Immunolo., v 141, p. 41-58, 2018.

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