Este ano de 2020 prometia muita conversa e discussão na área de microbiologia de alimentos: finalmente a famosa RDC 12/2001 da ANVISA, sobre padrões microbiológicos para alimentos, será revogada em dezembro/2020. Em dezembro de 2019, foram publicadas duas regulamentações pela ANVISA que substituirão àquela: RDC 331 e IN 60. Os micro-organismos e / ou grupos microbianos estabelecidos como padrões, para os diferentes tipos de alimentos, sofreram significativas modificações.
Mas, afinal de contas, como as mudanças dos padrões microbiológicos afetam o controle de qualidade de uma empresa?
Para começar a resposta à essa pergunta, preciso lançar mão de algumas definições. A primeira delas é a definição de padrão microbiológico. Entende-se por padrão microbiológico, de maneira geral, aqueles parâmetros (qualitativos e/ou quantitativos) estabelecidos por meio de documento legal pelos órgãos governamentais. Tais padrões (Ex.: RDC 331 e IN 60, 2019, ANVISA) aplicam-se ao alimento ofertado diretamente ao consumidor e tem a finalidade de diagnosticar a qualidade higiênico sanitária desse produto, visando a proteção da saúde humana frente aos perigos biológicos (micro-organismos).
Por outro lado, a palavra controle, em sua concepção original, nos remete aos substantivos domínio ou poder, por exemplo. Desse modo, controlar deve remeter a dominar, comandar, guiar, etc.
Assim, as análises microbiológicas devem (ou deveriam) servir de guia, para nortear as tomadas de decisões em relação ao processamento de um alimento; processamento esse que efetivamente determina a qualidade final (incluindo a microbiológica) de um produto.
A realização de análises microbiológicas no produto final, além de ser um custo, é, também, um tipo de ensaio destrutivo: cada produto final analisado será um produto a menos na prateleira. Ademais, na maioria das vezes, ensaios para diagnóstico microbiológico de alimentos são demorados. Uma empresa não deve, ou não deveria, ficar refém dos resultados de diagnóstico microbiológico de seus produtos frente aos padrões estabelecidos, como se tais resultados fossem o próprio controle de qualidade do produto. Deve-se ter em mente que as análises microbiológicas de alimentos e a conformidade ou não dos resultados delas frente aos padrões estabelecidos, apenas refletem um controle adequado, ou não, do processamento do produto.
Façamos uma analogia com a fotografia: a análise microbiológica é a foto e o alimento é a cena a ser fotografada. O controle de qualidade não é dado pela foto em si, mas por diversos fatores que compõem a cena a ser fotografada: cenário, iluminação, abertura da lente, marca da câmera, posição dos objetos, dentre tantos outros fatores. O mesmo acontece com o processamento de alimentos e as análises microbiológicas: o resultado das análises será apenas o reflexo do que está sendo executado no processamento do produto – qualidade das matérias-primas, tecnologias utilizadas, ferramentas da qualidade implementadas pela empresa, qualidade da embalagem do produto, manipulação, etc.
Posto isso e considerando que os padrões microbiológicos tem como finalidade indicar se um alimento oferece ou não risco à saúde do consumidor, é preciso ter consciência de que existem muitos outros micro-organismos que podem impactar a qualidade de um alimento para além de sua inocuidade, e influenciam significativamente a validade comercial do produto: os deterioradores. Aqui, como na analogia da fotografia, tais micro-organismos podem influenciar na qualidade do alimento (cena a ser fotografada) e devem ser realizadas análises (foto), independentemente de parâmetros legais (padrões microbológicos).
A matriz alimentícia (como produto final) é passível de sofrer deterioração por diversos grupos microbianos, o que está intimamente relacionado à contaminação microbiológica das matérias-primas e ao processamento ao qual são submetidas. As tecnologias, embalagens e composição de diferentes alimentos também são bastante variadas. Assim, diversos “cenários a serem fotografados” podem ser pensados para um alimento. Deste modo, fica extremamente complicado para os órgãos governamentais estabelecerem padrões microbiológicos para deterioradores. Cada empresa, de acordo com as características do seu produto, do seu processo e da validade comercial definida, deverá estabelecer parâmetros a serem avaliados e, “de acordo com as fotos obtidas”, estabelecer seus controles de processo.
Padrões microbiológicos possuem a função de diagnosticar o alimento no que tange à sua inocuidade e consequente segurança ao consumidor. Mudanças na obrigatoriedade de analisar não significam, necessariamente, mudanças nos controles de processo. Se este for realizado de maneira adequada e sendo adotada a sistemática de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), por exemplo, o produto será seguro independentemente da análise no final: independentemente da cena a ser fotografada (análise microbiológica), o cenário (produto) existe e lá está de maneira pré-estabelecida e controlada.
Portanto, qualidade microbiológica de um alimento envolve o oferecimento de um produto que atenda aos padrões microbiológicos de inocuidade e que minimize e controle a presença de micro-organismos deterioradores. Neste último caso, a empresa será a responsável pelo monitoramento e estabelecimento de seus parâmetros. Aqui, vale uma importante observação, muitas vezes ignorada por grande parte das empresas: o monitoramento de micro-organismos deterioradores, e muitas vezes dos patogênicos, deve ser realizado minimamente no produto final. Ao contrário, o ideal é que as análises microbiológicas (fotografias) sejam realizadas ao longo do processamento (matérias-primas, ar, superfícies, equipamentos, utensílios, água de enxague, etc), uma vez que obtido o produto, qualquer não conformidade encontrada implicará em descarte ou reprocesso do mesmo. O controle será muito mais eficientemente exercido com diagnósticos dos elos da cadeia que envolvem a obtenção do produto. Com isso, o atendimento aos padrões legais vigentes será uma mera consequência e não o controle em si.