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Uma pandemia fúngica zumbi realmente seria possível?

Desde que The Last of Us veio para a televisão em formato de série lançada pela plataforma HBO, depois de ser sucesso como um game da Naughty Dog, muito se especulou sobre a real possibilidade de termos um apocalipse causado por uma pandemia fúngica, mais especificamente surgiram muitas dúvidas sobre a possibilidade do fungo Cordyceps, que é o agente causador do apocalipse zumbi na série realmente nos trazer prejuízos tão grandes à saúde, a ponto de precisarmos lutar pela nossa própria sobrevivência contra uma forma microbiana de vida.

Vamos em partes. Primeiramente precisamos deixar muito claro que o fungo Cordyceps é um fungo entomopatogênico, ou seja, que parasita insetos, e a partir disso realiza o processo conhecido como zumbificação, onde o fungo controla o inseto infectado até um lugar alto (geralmente em galhos e plantas) e onde ele acaba morrendo, para assim, o fungo crescer e espalhar os esporos em busca de outras vítimas para seguir infectando e garantindo assim a sua própria sobrevivência. Portanto, para nossa alegria e por dois motivos muito simples, não somos uma vítima-alvo do fungo Cordyceps. Primeiro, o público-alvo do fungo, que principalmente são aranhas e insetos, e em sua maioria a preferência dele é por formigas. E o segundo ponto é o fato de o nosso sistema imunológico ser resistente à infecção por esse tipo de fungo.

Outro fato importante e de relevância aqui para nós é que na série, a pandemia fúngica foi causada pelo aumento da temperatura no planeta – o que os fungos realmente amariam na vida real – e as infecções por Cordyceps teriam surgido em produtos farináceos, o que facilitaria a disseminação e o que faz muitíssimo sentido, pois, esses produtos historicamente têm relação com a contaminação fúngica e sempre estão no top trends das medidas de controle microbiológico, principalmente no controle da produção de micotoxinas em alimentos. Micotoxinas são substâncias químicas tóxicas produzidas por fungos. Na sua ação de decomposição dos alimentos, os fungos são capazes de produzir metabólitos secundários (micotoxinas), não essenciais para sua manutenção primária, mas capazes de atingir outras espécies, como nós humanos e animais.

Até aqui tudo bem, porque sabemos que o fungo Cordyceps da série não seria capaz de causar danos a nós humanos nos levando a um apocalipse zumbi fúngico, mas e as micotoxinas? Seriam elas então capazes de nos levar a uma pandemia apocalíptica? 

Vamos a outra história, a da microbiologia e o Grande Medo na Europa, mais especificamente na França. O Grande Medo é uma expressão que designa o período no qual o campesinato francês tomou conhecimento da Tomada da Bastilha. Saques, motins, ataques e incêndios eclodiram em cidades. Também ocorreram diversos ataques contra propriedades senhoriais gerando a fuga de muitos nobres de suas propriedades. No meio disso tudo, toda a plantação, de centeio principalmente, foi esquecida nas lavouras e o inverno rigoroso acabou por congelá-la. Com o passar do tempo, a chegada da Revolução e a mudança no clima (que descongelou as lavouras), levou o povo a não ter outra opção de alimento, que acabou colhendo o centeio esquecido e fazendo dele a base principal da sua alimentação. E foi aí que um problema real praticamente pandêmico aconteceu motivado por um fungo chamado de Claviceps purpúrea, comumente conhecido como esporão do centeio e produtor das toxinas do ergot, causadora do ergotismo.

Claviceps é um gênero fúngico, trivialmente chamado de cravagem, que inclui cerca de 50 espécies quase todas elas tropicais. A principal forma de reprodução (disseminação) desse gênero fúngico é o esclerócio. Quando um esclerócio cai no solo, o fungo permanece dormente até que as condições apropriadas desencadeiam a fase de frutificação (chegada da primavera, período chuvoso etc.) – justamente o que aconteceu no período do Grande Medo, no momento do descongelamento das lavouras. O esclerócio então germina, formando um ou vários corpos frutíferos com cabeça e estipe, de cor variável, semelhante a um cogumelo minúsculo. Na cabeça formam-se esporos sexuados filamentosos que são ejetados simultaneamente, quando plantas hospedeiras adequadas estão em floração.

Ergot que em francês significa “esporão” / Foto: https://aokin.de/products/mycotoxins/ergot_alkaloids/?lang=en

A infecção pela cravagem causa uma redução do rendimento e da qualidade do grão e palha produzidos, e se grãos ou palha infectados são fornecidos para alimentação de animais ou de seres humanos, pode causar uma doença chamada ergotismo. Os esclerócios negros e protuberantes de C. purpurea são bem conhecidos. Porém, muitas cravagens tropicais têm esclerócios castanhos ou cinzas, imitando a forma da semente do hospedeiro. Por esta razão, a infecção é muitas vezes ignorada, porque ele parece simplesmente uma semente de centeio, e foi aí que a população faminta e com medo, inocentemente moeu e consumiu esse “centeio“. Assim os problemas iniciaram, levando ao fato mundialmente conhecido, a pandemia do Fogo de Santo Antônio e o episódio da caça às Bruxas de Salém.

Esclerócio que misturado a sementes de centeio parece muito com o próprio centeio. / Foto: https://aokin.de/products/mycotoxins/ergot_alkaloids/?lang=en

O envenenamento humano devido ao consumo de pão de centeio feito a partir de grão infectado com cravagem foi comum na Europa nesse período. A epidemia na França durante a Revolução foi relacionada com o envenenamento com esclerócios do fungo e consequentemente com alcaloides como a ergotamina (micotoxina). Ergotismo é o nome coletivo dado a síndromes patológicas por vezes severas que afetam humanos e animais que ingeriram grãos de cereais contendo alcaloides da cravagem (ergot). Os monges dos Irmãos Hospitaleiros de Santo Antônio se especializaram no tratamento de vítimas de ergotismo com bálsamo contendo extratos de plantas tranquilizantes e estimuladores da circulação. As vítimas sentiam fortes sensações de queimadura no corpo pelos efeitos dos alcaloides da cravagem no sistema vascular, devido à vasoconstrição dos vasos sanguíneos, por isso o nome comum do ergotismo é “Fogo de Santo Antônio”. 

Outro ponto da fama do fungo Claviceps purpurea é que a historiadora Linnda R. Caporael propôs em 1976 que os sintomas histéricos das jovens na origem dos julgamentos das Bruxas de Salém haviam sido o resultado do consumo de centeio contaminado com esclerócios do fungo pois, outro sintoma da intoxicação pelas toxinas alcaloides do ergot são as atividades neurotrópicas dos alcaloides da cravagem, que podem causar alucinações e comportamento irracional, convulsões e mesmo a morte. Corroborando, o autor britânico John Grigsby sustenta que a presença de cravagem nos estômagos de alguns dos chamados ‘corpos das turfeiras’ (restos humanos da Idade do Ferro encontrados em turfeiras do nordeste da Europa, como o Homem de Tollund) é indicadora do uso de cravagem em bebidas rituais num culto de fertilidade pré-histórico, que explicaria que tudo não passou de overdoses de ergotamina, a famosa micotoxina produzida pelo C. purpurea e causadora da nossa real epidemia fúngica zumbi da Idade Média.

Desde então, muitos estudos trouxeram muitas outras informações ao longo dos anos sobre esse fungo que infecta o centeio e outros cereais, produzindo os alcaloides que causam o ergotismo em humanos e outros animais que consumam grãos contaminados com o corpo frutífero (esclerócio) do fungo. Também, a partir do estudo do esporão do centeio, em 1943, foi descoberta a substância dietilamida do ácido lisérgico, popularmente conhecido como LSD que é um poderoso alucinógeno. 

Nos dias atuais, a pesquisa de toxinas do ergot e da presença do fungo Claviceps purpurea é obrigatória em alimentos e subprodutos usados para alimentação animal em muitos países europeus, sendo muito conhecida na também na área de alimentação animal ao redor de todo o mundo, porém, o que poucos sabem (sabiam) é onde essa história realmente iniciara!

 

Referências utilizadas:

Butler, M.D., Alderman, S. C., Hammond, P.C., Berry, R. E. (2001). Association of Insects and Ergot (Claviceps purpurea) in Kentucky Bluegrass Seed Production Fields. J. Econ. Entomol. 94 (6): 1471–1476.

Caporael LR (1976). Ergotism: the satan loosed in Salem?. Science (journal). 192 (4234): 21–6. 

EFSA Panel on Contaminants in the Food Chain (CONTAM). Scientific Opinion on Ergot alkaloids in food and feed. EFSA Journal 2012 ;10(7):2798: 158.

Kruppa, Pedro C.. CLAVICEPS. Biológico, São Paulo, v.66, n.1/2, p.35-37, jan./dez., 2004.

Spanos NP, Gottlieb J (1976). Ergotism and the Salem Village witch trials. Science (journal). 194 (4272): 1390–4. 

 

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