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Piscicultura em sistemas de recirculação de água: uma produção sustentável

O consumo de pescado faz parte da dieta de muitas culturas ao redor do mundo, fornecendo nutrientes essenciais e diversificando o paladar, além de possuir proteínas de alta qualidade, ômega-3, vitaminas e minerais, que colaboram para a saúde cardiovascular, o desenvolvimento cerebral e o fortalecimento do sistema imunológico. No entanto, a pesca excessiva e as práticas de pesca predatórias têm colocado em risco diversas espécies marinhas e de água doce, e comprometido a saúde dos ecossistemas aquáticos. Nesse contexto, a piscicultura, ou criação de peixes em cativeiro, surge como uma alternativa promissora, podendo garantir o abastecimento de pescado, suavizando os impactos causados pela pesca excessiva e otimizando a produção de alimentos, ao mesmo tempo em que contribui para a conservação ambiental. Porém, em áreas urbanas e regiões com alta densidade populacional, a disponibilidade de terras para a produção em larga escala de alimentos está cada vez mais limitada, necessitando de alternativas onde seja possível utilizar menos espaço, aumentando e melhorando o cultivo e a produção de pescado. 

Diante desse cenário, a piscicultura se destaca como uma atividade que pode ser desenvolvida em áreas menores, como tanques e viveiros, contribuindo para a segurança alimentar sem comprometer os recursos naturais. Além disso, a piscicultura pode ser integrada a outros sistemas de produção de alimentos, como a agricultura, em um modelo de produção mais sustentável e eficiente. A expansão da agricultura e da pecuária para novas áreas tem levado à destruição de florestas, à perda de habitats e à intensificação dos conflitos por recursos (CNA, 2016).

 A piscicultura, por sua vez, oferece uma alternativa mais sustentável e com menor impacto ambiental. Os desafios ambientais associados à prática de criação de peixes, ou aquicultura, frequentemente são abordados em uma perspectiva global. Isso significa que se busca compreender como essa atividade impacta o meio ambiente em geral, com ênfase na emissão de gases de efeito estufa resultantes desses processos. Um aspecto crucial a ser considerado refere-se à biossegurança, e como os produtores irão se precaver desses problemas. O manejo sanitário sempre deve ser seguido da maneira mais cuidadosa possível, a fim de reduzir a taxa de mortalidade e melhorar os índices produtivos no cultivo da piscicultura (CNA, 2017). Devido à utilização de espécies exóticas na aquicultura, sempre existe o risco de que essas espécies escapem para os ecossistemas naturais, o que pode impactar negativamente as populações silvestres, causando perdas irreversíveis. Esse fenômeno pode acontecer através de cruzamentos indesejados ou pela competição por recursos naturais limitados, levando a potencial desestabilização dos ecossistemas locais (TAL et al., 2009).

Conforme apontado por Godfray et al. (2010), para aumentar a produção de alimentos sem expandir a área utilizada para cultivo, é fundamental adotar práticas sustentáveis que minimizem os impactos ambientais, buscando opções para essas produções, com utilização de poucos espaços. Nesse contexto, surgiram os Sistemas de Recirculação de Aquicultura, conhecidos pela sigla “RAS” (do inglês Recirculating Aquaculture Systems). Esses sistemas são projetados para alcançar altas taxas de produção de peixes, ao mesmo tempo que garantem uma redução significativa nos impactos ambientais (BADIOLA et al., 2017a; LEGARDA et al., 2019; LONG et al., 2019). 

Um estudo realizado por Brum et al. (2019) enfatizou a relevância de métodos apropriados de processamento para manter a qualidade do pescado, desde a sua captura até a sua venda. Ademais, as normas governamentais, como as estabelecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil para a inspeção e segurança alimentar, são fundamentais para assegurar a qualidade e a segurança dos produtos pesqueiros. A aplicação de práticas de fabricação adequadas (BPF) e do Sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) é essencial para assegurar a qualidade e a segurança dos alimentos. Contudo, a preservação da qualidade do pescado ainda se depara com obstáculos como a ausência de infraestrutura apropriada em certas áreas, a demanda por maior capacitação dos profissionais e a complexidade do processo produtivo. (BRASIL, 2012). Para vencer esses obstáculos, são necessários mais investimentos em infraestrutura que têm o papel fundamental na garantia da qualidade e segurança dos produtos de peixes disponíveis no mercado. No entanto, a produção também levanta questões ambientais. O manejo inadequado das criações em cativeiro pode resultar em problemas, como o descarte inadequado de resíduos e o risco de introdução de espécies exóticas em ecossistemas naturais.

A implementação de sistemas de recirculação proporciona um manejo mais adequado para o desenvolvimento de uma aquicultura sustentável, trazendo maior densidade de cultivo, melhor conversão alimentar e maior produção por área. Isso se dá pela possibilidade de estabilizar as variáveis físico-químicas da água, como temperatura, pH, oxigênio dissolvido e alcalinidade, ao longo do ciclo de produção, o que é fundamental para a saúde e crescimento dos peixes (SUANTIKA et al., 2018; CALONE et al., 2019; GÓMEZ et al., 2019).

Os sistemas RAS não apenas protegem a biodiversidade, evitando que espécies exóticas escapem para o ambiente natural, mas também minimizam o risco de contaminação biológica e ajudam a impedir a proliferação de patógenos. Esse controle rigoroso da qualidade da água, além de reduzir a poluição ambiental oriunda do descarte de água usada, contribui para práticas de aquicultura mais seguras e ecológicas (SUANTIKA et al., 2018). Os sistemas RAS proporcionam uma série de benefícios ambientais significativos. Ao reciclar a água utilizada no cultivo, esses sistemas reduzem em até 90% o consumo de água doce em comparação com sistemas abertos. Além disso, a filtração biológica eficiente remove a maior parte dos nutrientes presentes nas excretas dos peixes, evitando a eutrofização de corpos d’água e a proliferação de algas nocivas. A reutilização da água também minimiza o descarte de efluentes, reduzindo a carga poluidora sobre o meio ambiente.

A piscicultura em sistemas de recirculação de água (SRA) (Figura 1) envolve o cultivo de peixes em um ambiente onde a água é tratada e reciclada constantemente. Essa abordagem eficiente não apenas minimiza o desperdício de água e perda de pescados, mas também tem um impacto ambiental reduzido. Os sistemas RAS são especialmente vantajosos em regiões onde a disponibilidade de água é limitada ou em áreas que enfrentam questões sérias relacionadas à poluição e ao uso sustentável dos recursos hídricos. Portanto, esses sistemas representam uma maneira moderna e com baixo impacto ambiental de produzir peixe, sendo altamente recomendados para locais que enfrentam restrições hídricas ou para empresas que desejam promover uma exploração mais sustentável dos recursos naturais. 

Figura 1: Estrutura básica do sistema de criação de pintados.

Fonte: Autores.

Entretanto, para que essa prática seja bem-sucedida, é necessário um investimento adequado em tecnologia, know-how técnico, infraestrutura, investimentos em pesquisa e desenvolvimento têm contribuído para o aprimoramento das técnicas de manejo. Com o avanço contínuo das tecnologias e o aumento da demanda por alimentos sustentáveis, os sistemas RAS têm se estabelecido como uma solução promissora para a produção de peixes de forma mais eficiente e ambientalmente responsável. Espera-se que os sistemas RAS se tornem cada vez mais acessíveis e difundidos. A integração com outras tecnologias, como a aquaponia, que combina a criação de peixes com o cultivo de plantas hidropônicas, pode otimizar a utilização dos recursos e gerar produtos de alto valor agregado. A aquaponia, permite que os dejetos dos peixes sirvam como fertilizante para as plantas, criando um ciclo fechado de nutrientes e diminuindo a precisão de insumos externos. Essa combinação entre a piscicultura e a hidroponia resulta em um sistema de produção mais sustentável e eficiente, com menor impacto ambiental. Além disso, a aquaponia oferece a possibilidade de produzir alimentos frescos e de alta qualidade em áreas urbanas, colaborando para a segurança alimentar e o desenvolvimento local.

Em resumo, a necessidade de aumentar o consumo de pescado no Brasil envolve um esforço conjunto: é necessário educar a população sobre os benefícios nutricionais do produto e promover  sua inclusão nas dietas diárias.  Dessa maneira, é possível não apenas diversificar a alimentação dos brasileiros, mas também contribuir para a saúde pública e preservação ambiental, assegurando práticas sustentáveis. Projeções indicam que, até 2030, a demanda global por pescado poderá aumentar em cerca de 100 milhões de toneladas, com o consumo per capita subindo de 16 kg para 22,5 kg por ano (Gregolin, 2020, p.12). O Brasil, segundo a estimativa da Agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, tem potencial para atender 20% dessa demanda (Gregolin, 2020, p.12).  A qualificação da mão de obra é algo indispensável e essencial para o sucesso desses empreendimentos. A oferta de cursos e programas de capacitação pode preparar profissionais e empresários do ramo para atuarem nesse novo cenário, estimulando a inovação e a concorrência do setor, visto que ainda é um setor em crescimento. É importante sempre indicar que a transição para sistemas de produção mais intensivos necessita de mais tecnologia e requer um diálogo constante entre pesquisadores, agricultores, empresas e governos. A criação de leis e políticas públicas que estimulem a adoção de práticas sustentáveis e a inovação no setor agrícola são      efetivos para superar os desafios e aproveitar as inúmeras oportunidades que se apresentam, melhorando sempre a produção alimentícia. 

Referências Bibliográficas

  • BADIOLA, M.; BASURKO, O. C.; PIEDRAHITA, R.; HUNDLEY, P.; MENDIOLA, D. Energy use in recirculating aquaculture systems (RAS): A review. Aquacultural Engineering, v. 81, p. 57-70, 2018.
  • BATALHA, O. D. S. et al. Digestibility and physico-chemical characteristics of acid silage meal made of pirarucu waste in diets for commercial laying hens. Acta Scientiarum. Animal Sciences, v. 39, n. 3, p. 251-257, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4025/actascianimsci.v39i3.35112.
  • CALONE, R. et al. Improving water management in European catfish recirculating aquaculture systems through catfish-lettuce aquaponics. Science of The Total Environment, 2019.
  • CNA. O processo a formação profissional rural. (Série Metodológica) Brasília, DF. Publicado em: 2016.
  • CNA. Biosseguridade e resposta a emergência sanitária para a produção de animais de aquicultura. Manual Técnico. Brasil. Publicado em: 2017
  • GÓMEZ, S.; HURTADO, C. F.; ORELLANA, J. Bioremediation of organic sludge from a marine recirculating aquaculture system using the polychaete Abarenicola pusilla (Quatrefages, 1866). Aquaculture, v. 507, p. 377-384, 2019.
  • GODFRAY, H. C. J. et al. Food Security: the challenge of feeding 9 billion people. Science, v. 327, n. 5967, p. 812-818, 2010.
  • GREGOLIN, A. Crescente demanda mundial por pescado favorece Brasil. 2020.
  • LEGARDA, E. C. et al. Integrated recirculating aquaculture system for mullet and shrimp using biofloc technology. Aquaculture, 2019. DOI: 10.1016/j.aquaculture.2019.734308.
  • LONG, L. et al. Effects of stocking density on growth, stress, and immune responses of juvenile Chinese sturgeon (Acipenser sinensis). Aquaculture, 2018.
  • SUANTIKA, G. et al. Development of a zero-water discharge (ZWD)—Recirculating aquaculture system (RAS) hybrid system for super intensive white shrimp (Litopenaeus vannamei) culture under low salinity conditions and its industrial trial in commercial shrimp urban farming in Gresik, East Java, Indonesia. Aquacultural Engineering, v. 82, p. 12-24, 2018.
  • TAL, Y. et al. Environmentally sustainable land-based marine aquaculture. Aquaculture, v. 286, n. 1-2, p. 28-35, 2009.

 

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