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Prevenção de doenças de transmissão hídrica e alimentar

Introdução

As doenças de transmissão hídrica e alimentar (DTHAs) são uma das causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo. Em muitos países, nas últimas duas décadas, essas doenças têm emergido como um crescente problema econômico e de saúde pública. Há previsões de que o problema aumente no século 21, sobretudo devido às mudanças globais, incluindo crescimento da população, pobreza, exportação de alimentos e rações animais, que influenciam a segurança alimentar internacional (WHO, 2022). 

Com o aumento de casos dessas doenças pelo mundo e a gravidade dos sintomas que afetam a população, tem acendido o alerta para as autoridades de saúde pública. Como o Brasil é um país de clima tropical, com temperaturas entre 18º a 32ºC na maioria dos estados e com graves problemas hídricos e de saneamento básico, aliado também à falta de conhecimento por boa parte da população sobre práticas higiênicas e, somando à deficiência na promoção dos conceitos básicos de saúde pública por parte do governo, nas três esferas Municipal, Estadual e Federal, o país consiste em um ambiente ideal para desenvolvimento de surtos dessas doenças (ANVISA, 2020).

O CDC (Center for Disease Control), nos EUA, define um surto de DTHAs como um incidente em que duas ou mais pessoas apresentam uma doença semelhante após a ingestão de um mesmo alimento, sendo que as análises epidemiológicas apontam o alimento como a origem da doença. Entretanto, um único caso de botulismo ou envenenamento químico pode ser suficiente para desencadear ações relativas a um surto, devido à gravidade desses agentes.

A identificação de casos suspeitos de DTHAs que possam caracterizar um surto, obriga o profissional que os atende, mesmo em serviços de emergência, a acionar imediatamente o sistema de vigilância epidemiológica, para que se possam adotar as medidas de controle precocemente, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, para evitar danos maiores à comunidade (Figura 1).

Figura 1: Detecção de surto de DTHAs.

Fonte: SINAN/SVSA/Ministério da Saúde (Brasil, 2023).

Estima-se que mundialmente, uma em cada dez pessoas adoecem após consumir alimentos contaminados (BRASIL, 2020). De acordo com a Organização das Nações Unidas, cerca de 600 milhões de pessoas adoecem todos os anos por surtos de DTHAs e, desse total, aproximadamente 420 mil vêm a óbito. Nessas circunstâncias, 40% dos casos ocorrem em crianças menores de cinco anos, sendo 125 mil mortes por ano (FLEETWOOD et al., 2023). 

Já no Brasil, dados de 2007 a 2020, evidenciaram uma média de 662 surtos de DTHAs, com o envolvimento de 156.691 doentes (em média 17 doentes/surto), 22.205 hospitalizados e 152 óbitos (VIDAL et al., 2022).

A ocorrência de DTHAs vem aumentando de modo significativo em nível mundial, constituindo um grande problema de saúde pública. Fatores como a expansão dos restaurantes tipo fast foods, o consumo de alimentos em vias públicas, fora de casa e as mudanças de hábitos alimentares da população contribuem de forma significativa para a emergência dessas doenças no Brasil (Quadro1) que, por muitas vezes, são subnotificadas.

Quadro 1. Série histórica de surtos de DTHA’s no Brasil de 2014 a 2023.

Ano

Nº de surtosNº de expostosNº de doentesNº de hospitalizadosNº de óbitos

Letalidade

2014

8861243591570025249

0,06

2015

6733716510676145317

0,16

2016

538200896993514067

0,07

2017

5984740994261439120,13

2018

59757297840691690,11

2019

7711738895861301100,10

2020

29210548460059560,13
202154617076827863910

0,12

2022811339771433663010

0,07

202311622785419671144331

0,16

Total687457396911061412346121

0,11

Fonte: SINAN/SVSA/Ministério da Saúde (Brasil, 2023).

Entre 2016 e 2021, os estados brasileiros que apresentaram maior número de notificações totais de DTHAs foram São Paulo com 12.276 (24,5%); Minas Gerais com 5.654 (11,3%) e Pernambuco com 4.807 (9,6%). E apesar dos registros alarmantes, Zanetta et al. (2022), trazem uma percepção da população brasileira de baixo risco relacionada às DTHAs, ressaltando a importância de esclarecimento e educação nesta área.

É importante ressaltar que o número de registros e hospitalizações geram gastos ao poder público. A Agência Americana CDC (Centers for Disease Control and Prevention), estima que cerca 15,5 milhões de dólares por ano são destinados às internações devido a agentes patogênicos de origem alimentar nos Estados Unidos (MUN, 2020), enquanto no Brasil, apesar de dados subestimados, em função da falta de registro, as doenças por falta de saneamento custam para o Sistema Único de Saúde em um período de 5 anos, aproximadamente, 1 bilhão de reais (Folha de São Paulo, 2019).

A ocorrência de DTHAs está relacionada a diversos fatores, como condições de saneamento e qualidade da água para consumo humano, que muitas vezes é imprópria, práticas inadequadas de higiene pessoal e consumo de alimentos contaminados, existindo até indícios associando transtornos de saúde mental a patógenos de origem alimentar (BOLTON; ROBERTSON, 2016). 

No Brasil, a maioria das DTHAs são causadas por bactérias (principalmente Salmonella, Escherichia coli e Staphylococcus). No entanto, há também surtos dessas doenças causados por vírus (rotavírus e norovírus) e, em menor proporção, por substâncias químicas.

Segundo Silva (2016), com a ineficácia ou falta das ferramentas de qualidade, os alimentos podem ser contaminados durante todas as etapas da cadeia alimentar. A manipulação e a conservação são consideradas duas etapas com maior incidência de contaminação. Sendo assim, os manipuladores de alimentos têm um importante papel na sua prevenção.

Como evitar as DTHAs?

Os órgãos reguladores como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa e Ministério da Saúde, orientam que todas as empresas do setor alimentício estabeleçam ações para cumprir as exigências das resoluções em vigor. A RDC nº 216, de 15 de setembro de 2004, dispõe sobre Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação (BRASIL 2004), contudo, vale destacar a importância de um constante aperfeiçoamento das ações de controle sanitário na área de alimentos visando à proteção e a saúde da população. Assim, é necessário, além da aplicação da norma, a conscientização da população em geral (TONDO; BARTZ, 2019), o que muitas vezes é um desafio.

Mesmo estando em contato direto e constante com agentes causadores de doenças, há formas de evitar o seu desenvolvimento, através do monitoramento ambiental, dos colaboradores, da higienização de utensílios, ambientes e processos. As medidas de controle sugeridas pelo grupo de análise de risco da OMS incluem o controle das matérias-primas usadas na fabricação das formulações, o controle sanitário das plantas produtoras de alimentos a fim de reduzir a prevalência de bactérias no ambiente de produção e ao seu redor, o controle da contaminação cruzada e a implementação do sistema APPCC, Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle, para controlar os perigos na produção. Assim, uma opção para o perfeito monitoramento do processo é a análise através do diagnóstico microbiológico.

Um sistema de monitoramento aprimorado e uma abordagem estruturada do campo à mesa, como enfatizado pelo APPCC, foram adotados durante os últimos 20 anos, e todos os setores da cadeia alimentícia são incentivados a seguir práticas de segurança alimentar (NEWELL et al., 2010). No entanto, apesar dos esforços contínuos do governo, da indústria e do meio acadêmico, a prevenção de surtos dessas doenças de origem alimentar ainda é um problema de saúde pública constante e os desafios persistem. A responsabilidade pode estar incorporada no fato de tais implementações se basearem fortemente nos resultados de esforços substanciais de investigação no diagnóstico de doenças intestinais e na detecção de agentes patogênicos de origem alimentar.

Considerações finais 

A produção de alimentos no Brasil constitui uma importante atividade econômica. Sendo assim, o controle de qualidade desses alimentos é fundamental e, nesse sentido, é relevante destacar a importância das Boas Práticas que são procedimentos que devem ser adotados por serviços de alimentação a fim de garantir a qualidade higiênico-sanitária e a conformidade da segurança dos alimentos com a legislação sanitária vigente, uma vez que, no Brasil, a legislação é completa e bastante abrangente porém, devido à extensão territorial, a fiscalização é dificultada por parte dos órgãos fiscalizadores. Apesar de rigorosas e impactantes nos rendimentos financeiros dos estabelecimentos, tais medidas são extremamente necessárias devido à alta taxa de transmissibilidade das DTHAs

Numerosos surtos atraem atenção da mídia e aumentam o interesse dos consumidores. Por se tratar de um agravo de importância em saúde pública, é necessário também a realização de um trabalho de conscientização da população quanto à importância da notificação de casos de DTHAs, bem como de educação em saúde, com ênfase nas boas práticas de manipulação de alimentos.

 

Referências

  • BRASIL. Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar (DTHA). Brasília: Ministério da Saúde, 2020.  Disponível em: https://www.gov.br/saude/ptbr/assuntos/saude-de-a-a-z/d/dtha. Acesso em: 28 de fevereiro de 2024.
  • BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada  nº 216, de 15 de setembro de 2004. Diário Oficial da União, Brasília, 15 set. 2004. Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_216_2004_COMP.pdf/66f5716e-596c-4b9d-b759-72ce49e34da0 Acesso em: 28 de março de 2014.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica . Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2023.
  • FLEETWOOD, J.; HOLLAND, D.; SHACKLETON, J.; MAHMOUDZADEH, N. Foodborne illness, hygiene scores, and the “switch effect”. Food and Humanity, v. 1, p. 940–950, 2023
  • Int. J. Food Microbiol., v.139, p.3-15, 2010
  • JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Em 5 anos, doenças por falta de saneamento custam R$ 1 bi ao SUS. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/em-cinco-anos-doencas-por-falta-de-saneamento-custam-r-1-bi-ao-sus.shtml. Acesso em 04 abril 2024.
  • MUN, S.G.  The effects of ambient temperature changes on foodborne illness outbreaks associated with the restaurant industry. International Journal of Hospitality Management, p.1-12, 2020.
  • NEWELL, D.G.; KOOPMANS, M.; VERHOEF, L.; DUIZER, E.; AIDARA-KANE, A.; SPRONG, H.; OPSTEEGH, M.; LANGELAAR, M.; THREFALL, J.; SCHEUTZ, F.; GIESSEN, J.V.D.; KRUSE, H. Food-borne diseases – the challenges of 20 years ago still persist while new ones continue to emerge.
  • SILVA, H.R.; GIANOGLOU, F.M.; CAMPOS, M.F.; GRACIANO, E.M.A.; TOLEDO, R.C.C. Listeriose: uma doença de origem alimentar pouco conhecida no Brasil. Higiene Alimentar, v.30, n.262, p.17-20, 2016.
  • TONDO, E.C.; BARTZ, S. Microbiologia e Sistemas de Gestão da Segurança de Alimentos. v.2, p.19-383, 2019.
  • VIDAL, B.T. de O.; SOUZA, D.N. de; SOUZA, M. dos R.; FREITAS, F.M.N. de O.; FERREIRA, J.C. de S. The importance of good practices in the prevention of foodborne diseases (FTS) in food and nutrition units (HUS). Brazilian Journal of Development, v.8, n.5, p. 39320-39333, 2022.
  • WHO. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Food Safety. 2022. Disponível em: https://www.who.int/newsroom/fact-sheets/detail/food-safety. Acesso em 03 de março de 2023.
  • ZANETTA, L.D.; HAKIM, M.P.; STEDEFELDT, E.; ROSSO, V.V.; CUNHA, L.M.; REDMOND, E.C.; CUNHA, D.T. Consumer risk perceptions concerning different consequences of foodborne disease acquired from food consumed away from home: A case study in Brazil. Food Control, p.1-6, 2022.
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