De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (2019), o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do desenvolvimento neurológico, caracterizado por dificuldades de comunicação e interação social e pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos.
O TEA pode apresentar uma variedade de sintomas, o que torna seu diagnóstico, na maioria das vezes, complicado. No entanto, a ciência tem encontrado formas de identificar o transtorno, especialmente por meio dos hábitos alimentares e nutricionais (Mayes; Zickgraf, 2019). Isso ocorre porque as crianças portadoras do TEA apresentam elevada prevalência de seletividade alimentar, com hábitos atípicos no momento das refeições. Tais hábitos, de acordo com os pesquisadores citados acima, incluem preferências alimentares limitadas, hipersensibilidade às texturas ou temperaturas dos alimentos, além de cor e sabor.
Essa seletividade é preocupante, uma vez que se as crianças consomem apenas um ou outro tipo de alimento, elas poderão apresentar problemas de saúde relacionados à carência de determinados nutrientes. Para Smolko et al. (2024), os distúrbios alimentares podem levar a desequilíbrios nutricionais nas crianças, afetando negativamente a sua saúde somática e mental, com consequências significativas ao longo da vida. Assim, compreender e abordar problemas de comportamento alimentar em crianças, especialmente aquelas com TEA, é vital para a sua saúde, desenvolvimento e bem-estar geral. A detecção e intervenção precoces são fundamentais no gerenciamento de problemas de comportamento alimentar nessas crianças, sendo melhores os resultados.
Estudos mostram que determinadas características do autismo estão relacionadas com o comportamento alimentar desde a infância. Muitas características sensoriais estão envolvidas nos comportamentos de crianças com TEA e, entre as principais características, aquelas relacionadas aos alimentos são a sensibilidade gustativa e olfativa, havendo preferência por apenas alguns sabores e escolha de alimentos pela textura, evitando alguns aromas tipicamente comuns na alimentação de outras crianças (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019). Os utensílios utilizados no momento de consumo, os locais de alimentação, bem como as formas de apresentação das refeições também podem ser motivos de seleção dos alimentos. Assim, a aversão ou recusa a alguns alimentos é comum entre esses indivíduos.
Mayes e Zickgraf (2019) realizaram um estudo com 2.102 crianças, sendo 1.462 portadoras de TEA, 327 portadoras de outros transtornos (TDAH, deficiência intelectual, distúrbio de linguagem e dificuldade de aprendizagem) e 313 crianças consideradas típicas. Os comportamentos alimentares atípicos foram avaliados com a Lista de Verificação para o Transtorno do Espectro Autista, com base em uma entrevista padronizada com os pais. Os pesquisadores constataram que comportamentos atípicos foram significativamente mais comuns em crianças com TEA (70,4%) do que com outros transtornos (13,1%) e crianças típicas (4,8%). Para crianças com TEA que apresentavam comportamentos alimentares atípicos, o comportamento mais comum foi preferência alimentar limitada (88%), seguido de hipersensibilidade às texturas dos alimentos (46%), outros padrões peculiares, com maior frequência comendo apenas uma marca de alimento (27%) e embolsar a comida sem engolir (19%). Produtos de frango como nuggets foram os preferidos por 92% das crianças com TEA que tinham preferências alimentares limitadas.
Outro estudo realizado por Smolko et al. (2024) verificou que as dificuldades mais pronunciadas surgem da incapacidade de diversificar adequadamente a dieta de uma criança, o que pode resultar em deficiências quantitativas e qualitativas em macro e microelementos essenciais para o crescimento e o desenvolvimento, levando ao desequilíbrio indesejável.
Dessa forma, esses comportamentos poderão acarretar em uma alimentação monótona que implica na saúde do indivíduo em curto e a longo prazo. Além disso, são citados problemas de comunicação social, deficiências na habilidade motora e na fala, bem como sensibilidades sensoriais e gustativas, neofobia alimentar, que acarretarão na insegurança nutricional de pessoas com TEA. Estes fatores estão correlacionados com as condições gastrointestinais (Baraskewich, 2021).
Além dos aspectos neurodivergentes, os distúrbios gastrointestinais são uma das comorbidades mais comuns entre aqueles que possuem TEA. Isso acontece, pois, o eixo intestino-cérebro está envolvido com as manifestações clínicas do TEA. Um estudo realizado por Yang et al. (2023), fez um comparativo entre 1.222 crianças com TEA e 1.206 crianças com desenvolvimento típico (DT), em 13 cidades da China. As taxas de constipação (40,098% vs. 25,622%), odor excessivo nas fezes (17,021% vs. 9,287%) e sintomas intestinais (53,601% vs. 41,294%) foram significativamente maiores em crianças com TEA.
O eixo intestino-cérebro pode ser explicado por meio da comunicação entre o sistema nervoso central e o sistema nervoso entérico, que conecta os aspectos emocionais e cognitivos do cérebro com os aspectos intestinais, através de ligações neurais, endócrinas e humorais. Assim, quando ocorre um desequilíbrio neurológico, este afeta o trato gastrointestinal, aumentando suas disfunções (Figura 1), havendo interferência direta entre um e outro, podendo impactar positivamente ou prejudicialmente o equilíbrio funcional do organismo (Cupertino, 2019).
Figura 1: A relação entre o eixo microbiota intestino-cérebro e as perturbações do espectro autista e as estratégias terapêuticas testadas para modular.
Fonte: Sharon et al., 2016 e Trebossen et al., 2022
Estudos que demonstram o potencial significativo do uso de probióticos para a saudabilidade da microbiota intestinal, como tratamento para pessoas com TEA, são crescentes. Os probióticos são microrganismos vivos que quando consumidos em quantidades adequadas, conferem benefícios à saúde do hospedeiro (Hill et al., 2014), atuando diretamente no intestino com a função de equilibrar a microbiota intestinal. Nesse sentido, eles são usados como estratégia para modular a microbiota intestinal, reduzindo a microbiota nociva que está envolvida com a metabolização negativa do sistema nervoso dos indivíduos.
Além dos probióticos e os prebióticos, fibras alimentares não digeríveis também podem ser adicionadas às dietas das crianças com TEA, com resultados promissores. Um estudo in vitro desenvolvido por Grimaldi (2017) avaliou a influência da suplementação de galactooligossacarídeos prebióticos sobre a ecologia microbiana intestinal e função metabólica usando amostras fecais de crianças com TEA e sem TEA. O estudo apresentou resultados positivos, indicando que o uso de galactooligossacarídeos modificou a população bacteriana intestinal e influenciou a atividade metabólica, beneficiando a saúde a longo prazo.
Um estudo realizado por Li (2024), demonstra que crianças com TEA apresentam uma ingestão alimentar inadequada, com poucas frutas, vegetais e legumes, quando comparadas com crianças de desenvolvimento típico. Em relação aos aspectos gastrointestinais, os portadores de TEA possuem sintomas mais graves quando comparados às crianças típicas. Esse resultado pode ser explicado através da gravidade dos sintomas do TEA, como por exemplo, a sensibilidade ao paladar e olfato, que limita a escolha dos alimentos e contribui para dietas mais pobres.
Um estudo realizado por Ahumada (2022) no Chile, com crianças de 2 a 12 anos, mostrou uma comparação da frequência alimentar com as recomendações do Guia Alimentar Infantil Chileno. Os resultados mostraram que: 59,72% consomem duas porções de ovos por semana; 72,22% consomem três porções de carnes por semana; 52,18% consomem três porções de laticínios por dia e 79,17% consomem duas porções de cereais por dia. Porém, os resultados foram negativos em relação ao consumo de água, de hortaliças e de frutas, em que 80,56%, 93,06% e 62,50% respectivamente, não cumprem as necessidades do Guia Alimentar.
É fundamental estarmos atentos à detecção precoce dos transtornos alimentares em crianças e adolescentes, pois as evidências indicam que intervenções terapêuticas realizadas o mais cedo possível podem resultar em melhores perspectivas de recuperação e qualidade de vida. Portanto, é crucial que pais, educadores e profissionais de saúde estejam preparados para identificar e agir prontamente diante dos sinais desses transtornos, garantindo, assim, um desenvolvimento saudável e equilibrado para as crianças e os adolescentes (Almeida et al., 2023).
Além disso, o papel desempenhado pelo nutricionista é de extrema importância quando se trata de oferecer um suporte personalizado e específico para crianças que possuem TEA, atendendo às suas necessidades nutricionais de forma individualizada, através de uma dieta balanceada e rica em nutrientes essenciais. Além disso, o profissional trabalha em estreita colaboração com os pais e responsáveis, fornecendo orientações e promovendo ações educativas que visam estabelecer e manter uma rotina alimentar consistente no dia a dia da criança.
Para que a criança com TEA se permita consumir um alimento novo, é necessário realizar uma caminhada que perpassa por várias etapas como interagir com o alimento, olhar, cheirar, tocar, provar e comer (Oliveira; Souza, 2022).
Tornar a experiência da alimentação mais prazerosa e acessível para a criança com TEA é essencial, introduzindo gradualmente novos alimentos e incentivando hábitos saudáveis à mesa. Através desse acompanhamento nutricional personalizado, é possível não só melhorar a qualidade de vida da criança, mas também potencializar seu desenvolvimento integral. Garantir a ingestão adequada de nutrientes essenciais para o metabolismo é essencial para promover uma melhor qualidade de vida e bem-estar geral da criança com TEA, permitindo que ela alcance todo o seu potencial em termos de saúde e crescimento (Magagnin et al., 2021)
Dada a relevância de uma alimentação saudável para esse grupo específico, é fundamental incorporar diariamente frutas e vegetais, que são ricos em fibras e prebióticos, vitaminas e minerais, apresentando propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias que ajudam no controle do peso, de doenças associadas à obesidade e desempenham um papel importante sobre o intestino.
Uma maneira simples e eficaz de incluir frutas e vegetais nas refeições do dia a dia é por meio de produtos minimamente processados, que se encaixam facilmente na rotina das famílias, proporcionando uma alimentação nutritiva e de elevada praticidade. O preparo desses vegetais pode envolver atividades prazerosas que estimulam a criatividade, com formatos atrativos que contribuem para o desenvolvimento da coordenação motora durante o corte e modelagem, chamando a atenção das crianças com TEA. A experiência sensorial proporcionada pelas cores, aromas, sabores e texturas dos diferentes vegetais desperta o desejo de consumo, especialmente devido aos formatos diferenciados criados com uma abordagem lúdica (Giannoni et al., 2021).
Considerações Finais
A seletividade alimentar associada a desordens sensoriais está muito presente na maioria dos casos de crianças com TEA. Essas desordens sensoriais podem influenciar a aceitação dos alimentos devido às suas características de textura, sabor, cor e aparência, o que pode gerar problemas de saúde a longo prazo devido à baixa ingestão de macro e micronutrientes. Apesar desses empecilhos, existem possibilidades de diminuir a seletividade alimentar por meio de ações de terapia ocupacional, educação alimentar e nutricional que contemplem determinada dificuldade. O consumo de probióticos e prebióticos é essencial para garantir a saúde do trato gastrointestinal, contribuindo para beneficiar o eixo intestino-cérebro. É fundamental uma vigilância precoce para que sejam feitas interferências nutricionais e evitar o aparecimento de problemas de saúde nas crianças com TEA.
Referências
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Muito bom esse artigo, espero que possa ajudar a ampliar a visão de país e educadores sobre a importância da alimentação saudável de crianças com TEA, parabéns aos autores!!!