Desde os primórdios que, em vários países, a carne do pescado faz parte da dieta do homem e se destaca pelo seu alto valor nutritivo, pois é um alimento que possui uma composição química distinta, ou seja, ele possui, praticamente, todos os nutrientes necessários para o bom funcionamento do organismo, como cálcio, fósforo, ferro, iodo, cobalto e as vitaminas A, B1, B2 e D, rico em micronutrientes, ácidos graxos essenciais do tipo ômega 3 e ômega 6, de fácil digestibilidade, baixo teor de gordura, e representa um valioso complemento nas dietas pobres em vitaminas e minerais essenciais. Contudo, apesar de todos os benefícios e a riqueza nutricional que a carne do pescado oferece para a saúde das pessoas, não devemos nos esquecer dos dois indicadores principais para todos os tipos de alimentos: qualidade e segurança.
Atualmente o consumidor tem se tornado mais exigente e as indústrias vêm buscando se adequar a essa nova realidade. As legislações que exigem qualidade e segurança dos alimentos ao longo da cadeia produtiva, visam a manutenção das condições higiênico-sanitárias, devido ao fato do pescado ser mais susceptível ao processo de deterioração, se comparado a outros alimentos de origem animal.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que a cada ano, 1 (uma) em cada 10 (dez) pessoas são acometidas por doenças transmitidas por alimentos e isto representa um problema de saúde pública. Além disso, as doenças transmitidas por alimentos podem ser fatais em crianças menores de 5 anos, correspondendo a 420 mil mortes por ano. Isso reforça a importância da análise de risco de todas as etapas de processamento até a comercialização do pescado, prevenindo a contaminação de pescado por patógenos.
A avaliação microbiológica na cadeia do pescado constitui-se como um fator de grande importância para garantia da saúde do consumidor, pois, como bem sabemos, é um produto com maior suscetibilidade de deterioração devido à sua composição. Deste modo, todos os cuidados referentes a aspectos higiênico-sanitários deverão ser tomados desde a captura até a comercialização, assegurando que o pescado apresente resultados satisfatórios no que preconizam os padrões microbiológicos estabelecidos pela ANVISA. Uma vez que o produto demonstra conformidade, isso indica que todas as etapas de processamento foram realizadas adequadamente.
Para avaliação microbiológica da carne do pescado são utilizados como padrão a RDC ANVISA N° 331, de 23 de dezembro de 2019, que dispõe sobre os padrões microbiológicos e sua aplicação, e a Instrução Normativa Nº 60, de 23 de dezembro de 2019, aonde estabelece as listas de padrões microbiológicos para alimentos. É importante sinalizar que esses padrões entrarão em vigor a partir de dezembro/2020. Até lá poderão ser adotados os padrões referenciados na RDC ANVISA 12/2001.
Como principais parâmetros microbiológicos (micro-organismos, toxinas, metabólitos) podemos listar:
- Histamina: Limites exigidos somente para pescado com elevado teor de histidina, dentro das categorias: pescado e miúdos crus, produtos à base de carne moída ou picada de pescado, pescado e miúdos salgados ou salgados secos, pescado semielaborados desidratados.
- Salmonella: Limites exigidos para todas as categorias de pescado e produtos de pesca.
- Estafilococos coagulase positiva: Limites exigidos para pescado e miúdos crus, produtos à base de carne moída ou picada de pescado, pescado semielaborados desidratados.
- Escherichia coli: Limites exigidos para todas as categorias de pescado e produtos de pesca.
A metodologia analítica oficial para análises microbiológicas na carne do pescado, bem como em outros produtos de origem animal, está preconizada na Instrução Normativa N° 30, de 26/06/2018 (Brasil, 2018).
O conceito de qualidade nos produtos de pesca e aquicultura inclui o fator inocuidade, ou seja, que ele possa ser consumido e não cause danos à saúde do consumidor, assim como também pelo grau de frescor, que significa que o peixe apresenta características similares às que possui em vida / em curto de período de tempo após a captura. Vale salientar que é um alimento com elevada atividade de água nos tecidos e alto teor de nutrientes, que contribuem para uma rápida deterioração.
A contaminação do pescado pode ocorrer quando ele ainda está vivo. A qualidade da água em que o peixe está presente é o primeiro ponto a ser avaliado, durante e após a captura, sendo um elemento crítico e primordial para garantia da qualidade e segurança do pescado. A qualidade da água, junto com a manutenção da cadeia do frio e as práticas de higiene determinarão o tipo e a intensidade de contaminação que o pescado trará consigo quando for retirado da água, influenciando nos processos autolíticos no post-mortem.
Quando tratamos da importância da microbiologia na cadeia do pescado, devemos avaliar todos os aspectos que podem ocasionar contaminação do produto, uma vez que o pescado possui características intrínsecas e extrínsecas, relacionadas ao tipo de pesca e de espécie.
O pescado pode ser contaminado com o mais amplo e variado grupo de micro-organismos, e quando tratamos da pesca extrativa, a contaminação pode ocorrer na etapa de pós-captura, nos porões dos barcos pesqueiros com condições inadequadas de higiene, além do contato com gelo, que pode ser produzido a partir de água de má qualidade, bem como, a higiene pessoal da equipe de embarcação. Outro fator importante que podemos destacar é o transporte em condições insatisfatórias de refrigeração, do porto até as indústrias, comprometendo a cadeia do frio, aonde esta etapa é de fundamental importância para conservação do pescado. Podemos citar exemplos de espécie que fazem parte da pesca extrativa: atum, sardinha, pescada, cavala, agulhão, bonito, dourado, corvina, pargo; e, nesses casos, podemos ter a presença de Enterobactérias, além gênero Vibrio, Escherichia coli, Pseudomonas, Clostridium. É importante salientar também que os peixes formadores de histamina (arenque, atum, cavala, dourado, bonito) podem acarretar problemas de saúde pública, pelo processo alérgico desenvolvido pela histamina, pois a intoxicação é silenciosa e, depois de formada, não há como inativar, visto que ela é termoestável e sensorialmente imperceptível. A contaminação química ocorre quando há práticas inadequadas de captura, na manipulação e/ou no tempo de estocagem. Condições insatisfatórias do binômio tempo x temperatura possibilitam a degradação do aminoácido histidina em histamina – essa degradação ocorre em temperaturas superiores a 4,4ºC, pela presença de bactérias como Morganella morganii, Klebsiella pneumoniae, Hafnia alvei, Vibrio sp, Clostridium e Lactobacillus sp. Para evitar essa contaminação é necessária a manutenção das boas práticas de fabricação e o controle da cadeia do frio.
No caso do pescado oriundos da aquicultura, como por exemplo: tilápia e tambaqui, a qualidade e a segurança final desse pescado dependem, principalmente, do sistema de criação adotado, da qualidade da água utilizada, do manejo realizado nos tanques, da composição do alimento fornecido e da densidade populacional. No cultivo desse pescado são necessários cuidados higiênico-sanitários satisfatórios, pois, caso contrário, favorecerá a introdução e o crescimento de micro-organismos patógenos que são comuns de serem isolados em águas de aquicultura, como por exemplo, o Víbrio parahaemolyticus, Salmonella spp, Pseudomonas spp. Flavobacterium spp., Escherichia coli e Sthaphylococcus aureus.
No processo industrial, a contaminação do pescado pode ser decorrente do transporte inadequado, de falhas nas condições sanitárias de produção, da ocorrência de falhas de Boas Práticas de Fabricação durante a manipulação e conservação e/ou por desvios na qualidade da água, que podem facilitar o desenvolvimento dos patógenos (Coliformes termotolerantes, Staphylococus coagulase +, Listeria monocytogenes, Shigella spp., Yesrsinia enterocolitica, Salmonella spp) ,presentes no próprio pescado ou provenientes do ambiente.
Alterações nas características químicas, físicas e microbiológicas do pescado podem resultar em alterações sensoriais (textura, coloração, brilho e odor). Na tabela a seguir estão destacados os principais aspectos sensoriais que podem ser observados:
Tabela 1. Aspectos sensoriais para determinação da qualidade do pescado
Adaptada de Fernandes et al. 2006
Os agentes biológicos envolvidos na contaminação de pescado podem causar distúrbios que vão de uma gastroenterite leve até casos mais graves, podendo levar consumidores a óbito. Alguns desses patógenos estão presentes naturalmente no ambiente aquático, enquanto outros podem ser introduzidos a partir da falta de condições higiênico-sanitária. Na Tabela 2 encontram-se alguns exemplos de patógenos alimentares que acarretam doenças transmitidas por alimentos.
Tabela 2. Micro-organismos envolvidos em contaminação alimentar pela ingestão de pescado contaminado
Para garantia da qualidade e segurança do pescado e a preservação da saúde pública, devem ser mantidos os cuidados higiênico-sanitários, desde a captura até a comercialização do pescado.
REFERÊNCIAS
Amagliani, G. et al. Incidence and role of Salmonella in seafood safety. Food Res. Intern,. v.45, p.780788, 2012.
Brasil. 2001. Regulamento técnico sobre padrões microbiológicos para alimentos. Resolução RDC nº12: de 02 de Janeiro de 2001. Agência Nacional de Vigilância Sanitária–Anvisa.
Brasil. 2019. Regulamento técnico sobre padrões microbiológicos para alimentos. Resolução RDC nº 331: de 23 de dezembro de 2019. Agência Nacional de Vigilância Sanitária–Anvisa.
Brasil. 2019. Listas de padrões microbiológicos para alimentos. Resolução IN nº 60: de 23 de dezembro de 2019. Agência Nacional de Vigilância Sanitária–Anvisa.
Brasil. 2018. Métodos Analíticos Oficiais para análise de alimentos de origem, Instrução Normativa nº 30, de 26/06/2018.
Carlos Alberto. Doenças Transmitidas por pescado no Brasil. Rev. Bras. Med. Vet., 32(4):234-241, out/dez 2010.
Doenças Transmitidas por alimentos: causas, sintomas, tratamento e prevenção. Disponivel em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doencas-transmitidas-por-alimentos (acessado em 10/07/2020)
FAO, Food and Agriculture of The United Nations. The State of World Fisheries and Aquaulture. SOFIA. 2006. Disponível em http://www.fao.org (acessado em 25/05/2020).
Fernandes et al. System to evaluate fish quality. Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis – SC – Brasil. ISSN 1676 – 1901 /Vol. 6/ Num. 3/ dezembro 2006
O perigo da histamina no pescado. Disponível em: http://seafoodbrasil.com.br/coluna-da-qualidade-histamina-em-pescado. (Acessado em 11/07/2020).
Oliveira, A.B, at al. Doenças transmitidas por alimentos, principais agentes etiológicos e aspectos gerais: uma revisão. Rev HCPA 2010;30(3):279-285.