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Resíduos sólidos provenientes da cadeia pesqueira: um problema solucionável?

O Brasil é um país notoriamente conhecido pela alta capacidade de produção no setor de agronegócios, tendo inclusive grande destaque internacional, vital para a nossa economia em crise. Em meio a esse leque de opções de cadeias produtivas, os produtos de origem animal têm grande destaque, com médias altas de produção e exportação, das quais se destacam a carne bovina, suína e de aves. Só no ano de 2020, 24 novos mercados foram abertos para a exportação deste tipo de produto, somando um total de mais de 180 países, de acordo com o 9º Relatório de Atividades do Serviço de Inspeção Federal (DIPOA, 2021).

O mercado brasileiro ainda tem muito espaço para incentivos e expansão, principalmente no tangente à valorização dos produtos de pescado. Os dados de sua produção e consumo não acompanhavam os outros produtos de origem animal, e podem ser citados como fatores que contribuíam para isso: a inconsistência no abastecimento; hábitos culturais, que implicam no consumo do produto; cadeia de produção desorganizada; produtos com alto preço; entre outros. Alguns destes entraves existem até hoje, porém, a produção interna tem crescido. Foram 802.930 toneladas em 2020, um crescimento de 5,93% comparado ao ano de 2019 apenas na cadeia de peixes de cultivo, com um grande destaque para o avanço da tilápia (Oreochromis niloticus), que corresponde a 60% da produção nacional. Com o mercado aquecido, a projeção para 2021 é que o Brasil dobre em valores de exportação desta espécie, segundo dados da Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR, 2021). Esse aumento na produção vem ocasionando problemas ambientais, visto que em todas as etapas do seu processo produtivo, o setor pesqueiro gera um grande volume de resíduos (Figura 1).

Figura 1: Resíduos sólidos de pescado / Fonte: Arquivo Pessoal.

Todo material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade são classificados como resíduos sólidos, de acordo com a PNRS – Programa Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS (LEI Nº 12.305/2010). Quando não são tratados da maneira correta, podem causar inúmeros problemas ao meio ambiente, impactando o ecossistema negativamente. Pode-se usar como exemplo o decréscimo na concentração de oxigênio dissolvido em corpos hídricos, por conta de o pescado possuir grande quantidade de material orgânico em sua composição. Portanto, aumentando a capacidade de reaproveitamento do material destinado ao descarte, além do benefício financeiro resultado da criação de subprodutos, reduziria o impacto negativo ao meio ambiente. 

A NBR 10004 é uma norma técnica brasileira com a função de estabelecer critérios para classificar os resíduos sólidos, avaliando os riscos ao meio ambiente e ao ser humano. Para os efeitos desta norma, os resíduos são classificados em: classe I – perigosos e classe II – não perigosos. Nos resíduos de classe II, há uma subclassificação: II A – não-inertes e II B – inertes. Os de classe II são os materiais que apresentam uma maior capacidade de implantação de tecnologias voltadas para o reaproveitamento nas agroindústrias, de acordo com Lima (2013). Algumas dessas tecnologias já são realidade em algumas propriedades. Em alguns casos demandando baixa tecnologia, tornando-se acessíveis até mesmo para pequenos produtores. 

O Brasil ainda apresenta precariedade na destinação deste tipo de material, com 51% das cidades destinando o lixo de maneira incorreta, coleta domiciliar atendendo apenas 76% dos lares, além do índice médio de reciclagem abaixo dos 4% (ISLU, 2019).  O reaproveitamento de resíduos é uma tendência mundial e vem sendo cada vez mais estudada e incentivada, unindo a preocupação ambiental com o ganho financeiro baseado na criação de produtos derivados de resíduos resultantes de diversos processos produtivos. 

A cadeia produtiva do pescado possui algumas alternativas para o reaproveitamento dos resíduos, tais como a elaboração de farinha de pescado, o óleo de peixe e o curtimento da pele de algumas espécies para diversas finalidades, como o uso do couro (Figura 2), e serão discutidas a seguir.

Figura 2: Cadeira revestida com couro de Pirarucu (Arapaima gigas) / Fonte: https://cicb.org.br/cicb/noticias/moveis-do-projeto-design-na-pele-terao-lancamento-mundial-em-nova-york

Ao observar o processo produtivo da tilápia, peixe que domina a produção nacional, tem-se um maior entendimento da situação. O filé proveniente desta espécie, comercializado fresco ou congelado, é o produto cuja produção e comercialização mais crescem no mercado de peixes de água doce. No processo de filetagem, o rendimento do peixe pode chegar aos 35%, enquanto todo o restante são resíduos com potencial para elaboração de subprodutos (BOSCOLO, 2007).

 Para um maior aproveitamento de resíduos de peixe, produtos provenientes de carne mecanicamente separada (CMS); que é o produto obtido da remoção da carne dos ossos que a sustentam, após a desossa de carcaças de aves, de bovinos, de suínos ou de outras espécies, de acordo com o RIISPOA (BRASIL, 2020); tais como almôndegas, patês, medalhões e nuggets, tem sido cada vez mais aceitos pelo mercado, diminuindo as perdas e desperdícios da cadeia produtiva da espécie mais comercializada em nosso país (Figura 3).

Figura 3: Nuggets de Tilápia / Fonte: https://grubfisch.com.br/index.php/produto-tag/nuggets-de-tilapia/

(Todos os Direitos da Imagem são Reservados para Empresa GrubFisch Alimentos LTDA, a imagem aqui utilizada é para fins de divulgação ilustrativa).

Figura 4: Escondidinho de Tilápia / Fonte: https://www.copacol.com.br/produtos/3/292/escondidinho-de-tilapia-600g

(Todos os Direitos da Imagem são Reservados para Empresa Copacol-Cooperativa Agroindustrial Consolata, a imagem aqui utilizada é para fins de divulgação ilustrativa).

Outra opção para aproveitamento de resíduos de pescado é a silagem. Relacionada à etapa produtiva, a silagem vem ganhando cada vez mais espaço para estudos e implementações. Neste processo são utilizados resíduos resultantes de várias atividades da cadeia produtiva do pescado (cabeça, pele, espinha, vísceras, espécies subutilizadas na piscicultura continental, além de fauna acompanhante de pesca marítima, onde são capturadas espécies diferentes da espécie-alvo, de maneira acidental) para uma fermentação controlada. O resultado deste processo (Figura 4) pode ser utilizado na alimentação dos animais sendo incorporada junto à ração comercial. Além de ser uma excelente alternativa financeira, por ser um sistema de custo considerado baixo, possui a vantagem de obter um alto valor biológico em relação às rações, tornando possível a sua aplicação nos produtores de menor capacidade financeira (LIMA, 2013; DANTAS FILHO, 2019).

Figura 4: Silagem de Pescado. / Fonte: http://bioquimicadapesca.blogspot.com/2015/05/e-quem-disse-que-peixe-morto-nao-serve.html

Da mesma forma que a silagem, o processo de compostagem vem ganhando destaque como reaproveitamento de resíduos sólidos da cadeia do pescado na área produtiva. A compostagem é caracterizada pela biodegradação de maneira controlada, onde o resíduo é transformado em adubo orgânico (Figura 5), de manipulação fácil e livre de organismos patogênicos. Estudos comprovam a sua eficiência e viabilidade da compostagem, que apresentaram teores pertinentes de nutrientes importantes em diferentes porcentagens de uso de resíduos. Trata-se de uma alternativa simples e barata, viável a pequenos produtores, podendo ainda agregar valor a outros processos produtivos, uma vez que a demanda por alimentos orgânicos é uma tendência mundial (DE LIMA, 2013; VALENTE, 2018).

Figura 5: Compostagem de Pescado. / Fonte: http://protilapia.com.br/2017/08/07/compostagem-de-residuos-de-tilapia/

Outra atividade de destinação de resíduos provenientes da cadeia pesqueira que vem ganhando amplo destaque nos últimos anos é o aproveitamento da pele de tilápia voltada para o tratamento de queimaduras de pele em humanos e animais. Por se tratar de uma tecnologia recente, estudos vêm se intensificando ao longo dos últimos anos, porém já é comprovada a sua eficácia devido à semelhança da estrutura morfológica da pele dessa espécie com a pele humana, somadas a uma excelente capacidade de tração e uma cicatrização mais rápida. Possui ainda o benefício de não serem necessárias trocas constantes do curativo do paciente, como o uso de gaze, por exemplo. Esta característica deixa o processo menos dolorido para o paciente, além de mais barato, pois o curativo com gaze necessita ser trocado diariamente, provocando dores ao paciente, sendo ainda necessário o uso de anestésico em muitos casos. Em 2020, seu uso ganhou destaque nas mídias, no tratamento de animais feridos por queimaduras em incêndios no Pantanal (Figura 6), onde 27% deste bioma rico em biodiversidade foi consumido pelo fogo (LIMA-JUNIOR, 2017).

Figura 6: Pele de Tilápia utilizada no tratamento de queimaduras provenientes das queimadas no Pantanal no ano de 2020. Pata de um Tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla). / Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54479940

O incentivo à cadeia produtiva do pescado se reforça na possiblidade de valor agregado a todo o processo de produção. Os resíduos do processamento podem ser manufaturados e aproveitados em outros seguimentos do agronegócio, tornando assim a atividade mais atrativa, rentável e sustentável, características cada vez mais desejáveis pelo mercado consumidor.

 

REFERÊNCIAS UTILIZADAS NESTE TEXTO: 

ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Classificação de Resíduos Sólidos, NBR 10004, Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: http://www.vigilanciasanitaria.sc.gov.br/index.php/download/category/64-legislacao?download=433:nbr-10004. Acesso em: 02 jun. 2021.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA PISCICULTURA. Anuário 2021 Peixe BR da Piscicultura. São Paulo. 2021. Disponível em: https://www.peixebr.com.br/anuario-2021/. Acesso em: 02 jun. 2021.

BRASIL, PNRS. Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 3, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em 02 jun. 2021. 

BOSCOLO, Wilson Rogério; FEIDEN, Aldi. Industrialização de tilápias. Toledo: GFM Gráfica e Editora, 2007.

DANTAS FILHO, Jerônimo Vieira; FERREIRA, Elvino; CAVALI, Jucilene. Silagem de pescado como componente proteico para dieta de peixes tropicais comercializados na Amazônia. Tekhne e Logos, v. 10, n. 3, p. 55-67, 2019.

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DIPOA. Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal. Período de calamidade pública decorrente da pandemia por COVID-19. Relatório de Atividades do Serviço de Inspeção Federal, n. 10, versão 1, p. 1-19, 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/emissao-de-certificados-sanitarios-para-produtos-de-origem-animal-aumenta-18-em-2020/RelatoriodeatividadesSIFn10v113.01.2021.pdf>. Acesso em: 31 mai. 2021.

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ENKE, Dariane Beatriz Schoffen et al. Produção e caracterização de farinha de silagem química de pescado, destinado à piscicultura. PUBVET, v. 13, p. 153, 2019.

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3 comments
  1. Não concordo em hum item sobre a fauna acompanhante …ali temos peixes que samados aos kgs de espécies diferentes temos variedades ricas comercialmente…linguados …martelo …galhas .ovevas ..Betaras…pescadas pan…siri…Lulas…que se forem agregados a navios de arraste como por exemplo em ilha comprida e cananéia…somam em média 12 a 20 barcos na mesma costa…quanta fauna acompanhada teríamos na escolha com qualidades de abate e beneficiamento para consumo humano….não concordo em fazer destes massas para outros fins….

  2. Olá Mario. Concordo com vc. Com certeza essa fauna acompanhante poderia ser processada para consumo humano. Seria o ideal. Mas, infelizmente, o que acontece, muitas vezes, é o descarte dessa fauna…e uma alternativa ao descarte seria o aproveitamento. Obrigada pelo comentário para debate sempre enriquecedor. Abraço!

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