Portal colaborativo para profissionais, empresas, estudantes e professores da área de Segurança de Alimentos.

Riscos associados à presença de Clostridium spp. em alimentos

As doenças de transmissão hídrica e alimentar (DTHA), anteriormente designadas doenças transmitidas por alimentos (DTA), são doenças de natureza infecciosa ou tóxica causadas pela ingestão de alimentos contaminados. Geralmente, são causadas por agentes patogênicos e apresentam elevada incidência ao redor do mundo. Essas enfermidades são caracterizadas por uma variedade de sintomas gastrointestinais, como náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal e febre. Em alguns casos, podem ocorrer complicações graves, como sepse, meningite, abortos e síndrome de Guillan Barré. 

As DTHA ocorrem constantemente e são veiculadas por alimentos contaminados com micro-organismos patogênicos. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, os principais micro-organismos causadores de DTA são: Salmonella spp., Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Bacillus cereus, coliformes e Clostridium perfringens.

O gênero Clostridium é constituído por micro-organismos Gram-positivos, com formato de bastonete, anaeróbicos e formadores de endósporos. São amplamente encontrados em vegetação, no solo e nos intestinos de humanos e animais. Os micro-organismos esporulados são os principais causadores da deterioração de alimentos processados termicamente, tendo em vista que seus endósporos os ajudam a sobreviver ao processamento em altas temperaturas. Essas bactérias, portanto, podem permanecer viáveis mesmo após processos térmicos como a pasteurização e a ultrapasteurização. Além disso, muitos alimentos são embalados a vácuo ou em uma atmosfera anaeróbica (alimentos enlatados, por exemplo), o que restringe o crescimento de bactérias aeróbicas, mas não de micro-organismos anaeróbicos e esporulados como os clostridios.

Embora várias espécies de clostrídios estejam associadas apenas à deterioração de alimentos, tais como C. tyrobutyricum, C. butyricum e C. sporogenes, existem quatro espécies que são clinicamente importantes: C. botulinum, C. perfringens, C. difficile (recentemente renomeado para Clostridioides difficile) e C. tetani. Dessas, apenas o C. botulinum e o C. perfringens causam intoxicações ou toxinfecções alimentares. 

A contaminação por C. perfringens e C. botulinum geralmente está associada a alimentos mal cozidos, mal armazenados ou de procedência duvidosa, dentre eles estão: alimentos em conservas, vegetais, embutidos, molhos, carnes de aves e de bovinos e outros alimentos provenientes de animais. As infecções por esses patógenos geralmente são iniciadas após a ingestão de esporos, embora C. perfringens também possa entrar no corpo por meio de feridas contaminadas.

C. perfringens é amplamente encontrada no solo, na água e no trato gastrointestinal de vários animais e humanos, e é capaz de produzir diferentes tipos de toxinas com diversos modos de ação. As cepas de C. perfringens são, inclusive, subdivididas em tipos toxigênicos de A a E com base na combinação das seis toxinas principais que eles produzem (alfa, beta, épsilon, iota, enterotoxina e toxina da enterite do tipo B). C. perfringens pode ser transferido para alimentos a partir do solo, poeira, através do trato intestinal de animais abatidos e através da contaminação devida à higiene inadequada durante o processamento em abatedouros e outras unidades produtoras de alimentos.

Essa espécie pode causar vários tipos de doenças, sendo a mais comum, a gastroenterite, desencadeada pela enterotoxina produzida. Algumas cepas estão associadas a uma gastroenterite de leve a moderada, caracterizada por dores abdominais agudas, diarreia, náuseas, febres e, em alguns casos, vômitos, e que melhora sem necessidade de tratamento (autolimitante). Outras cepas, no entanto, causam doenças mais graves, que podem lesionar o intestino delgado, perdurando cerca de 1 a 2 semanas e, por vezes, causando a morte. Vale ressaltar que a enterotoxina é termossensível, sedo inativada por temperaturas de cocção. Porém os esporos permanecem viáveis e podem germinar caos os alimentos sejam deixados em repouso por muito tempo.

C. perfringens é caracterizado por rápido crescimento em alimentos e pela produção intensiva de gases (como por exemplo, o gás sulfídrico). Este patógeno oportunista pode, também, causar infecções histotóxicas em humanos, como a gangrena gasosa em feridas contaminadas, e a enterocolite necrosante ou enterite necrótica, que são quase sempre fatais.

A gangrena gasosa é uma infecção necrotizante dos tecidos moles, que se caracteriza pela produção de gás e por necrose dos músculos esqueléticos, formando feridas e bolhas enegrecidas na pele, e com mau cheiro. Ocorre ainda enfisema e edema subcutâneo e que pode evoluir para a falência de múltiplos órgãos e consequente óbito.  Como ocorre uma rápida disseminação sistêmica de C. perfringens e suas toxinas, a taxa de mortalidade nesses casos pode alcançar 20 %. 

Já a enterocolite necrotizante é uma das principais causas de morbidade e mortalidade gastrointestinal em bebês prematuros, e os sintomas incluem ileíte e distensão abdominal inicialmente, evoluindo para apnéia, acidose metabólica, choque e coagulopatia intravascular disseminada. A enterite necrótica, por sua vez,  é mais associada a animais, geralmente aves, e é responsável por grande perda econômica para a indústria avícola a cada ano. Nas aves, a doença se caracteriza por  necrose epitélio intestinal, diarreia sanguinolenta, desidratação, penas eriçadas, inapetência e perda de peso corporal.

C. botulinum é o patógeno mais importante do gênero e produz uma potente neurotoxina (toxina botulínica), responsável pelo botulismo. O botulismo clássico ou alimentar representa uma forma típica de intoxicação, onde a toxina botulínica é ingerida, absorvida no intestino delgado, e transportada pelo sangue até as sinapses dos neurônios. Nelas, a toxina bloqueia a liberação de acetilcolina e produz o sintoma típico de paralisia flácida.

Os sintomas do botulismo geralmente aparecem de 12 a 36 horas após a ingestão da toxina bacteriana e incluem visão dupla, náusea, vômito, fadiga, tontura, dor de cabeça, garganta seca, nariz seco e falta de ar, finalizando com uma paralisia flácida descendente e simétrica, que compromete, inclusive a função respiratória do indivíduo. Essa doença apresenta alta taxa de mortalidade (aproximadamente 10%), considerado uma emergência médica e de saúde pública, tendo sua notificação compulsória. 

Já o botulismo infantil acomete principalmente crianças com idade inferior a um ano, pois elas possuem chances maiores de desenvolvimento da doença devido à imaturidade da microbiota intestinal. Ao ingerir um alimento contendo esporos, estes não são destruídos facilmente, então germinam no intestino, e dão origem a novas células vegetativas, que se multiplicam e produzem a toxina botulínica. A evolução da doença em bebês pode ser lenta, com constipação prolongada, ou pode levar à morte súbita. O mel é a única fonte registrada de alimento causador do botulismo infantil, tendo o C. botulinum como agente etiológico. Com base em relatórios epidemiológicos, a Organização Mundial da Saúde recomendou que bebês com menos de um ano de idade não devam ser alimentados com mel.

É notória a importância do controle microbiológico de Clostridium spp. em alimentos devido às implicações na saúde. Sendo assim, deve haver um critério rigoroso nas boas práticas de fabricação e manipulação, tendo em vista que, ambos os principais gêneros patogênicos, C. perfringens e C. botulinum, estão vastamente distribuídos em alimentos e no ambiente. Tecnologias como a esterilização comercial, a redução da atividade de água a valores inferiores a 0,96 e concentrações de nitrito e nitrato entre 150 e 200 ppm também são importantes para impedir que os esporos passem para a forma vegetativa e ocorra a produção das toxinas.

A indústria deve garantir a integridade do alimento desde a fabricação até o consumo pelo comprador e para isso, fazem-se necessários o controle e a garantia de qualidade. No entanto, esse controle de qualidade do alimento deve continuar pelas mãos do consumidor, de modo a evitar falhas na refrigeração e/ou no aquecimento adequado do alimento, que podem resultar na proliferação bacteriana e, consequentemente, nas DTHA associadas aos clostrídios e a outros micro-organismos.

 

Referências:

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar (DTHA). Brasília: Ministério da Saúde. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/dtha
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Surtos de doenças de transmissão hídrica e alimentar no Brasil. Informe 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/dtha/publicacoes/surtos-de-doencas-de-transmissao-hidrica-e-alimentar-no-brasil-informe-2022/view
  • COLÔMBIA. Ministerio de Salud. Instituto Nacional de Salud (INS). Enfermedades Transmitidas por Alimentos (ETA). Boletín Epidemiológico Semanal: Semana Epidemiológica 52 de 23 a 29 de dezembro de 2018. 2018, 31 pp. Disponível em: https://www.ins.gov.co/buscador-eventos/BoletinEpidemiologico/2018%20Bolet%C3%ADn%20epidemiol%C3%B3gico%20semana%2052.pdf
  • FERNANDES, R. T., ROSA, I. G., CONTI-SILVA, A. C. Microbiological and physical-chemical characteristics of honeys from the bee Melipona fasciculata produced in two regions of Brazil. Ciência Rural, v. 48, n. 5, 2018; Disponível em: https://www.scielo.br/j/cr/a/8qKwXW5D93Ch6D7LDHtxZYv/?lang=en
  • FERNÁNDEZ, S., MARCÍA, J., BU, J., BACA, Y., CHAVEZ, V., MONTOYA, H., VARELA, I., RUIZ, J., LAGOS, S., ORE, F. Doenças Transmitidas por Alimentos (DTAs): Um Alerta ao Consumidor. Revista Científica Multidisciplinar Ciência Latina, v. 5, n. 2, p. 2284-2298, 2021.
  • FORSYTHE, S. J. Microbiologia da segurança dos alimentos. 2ª Ed. Porto Alegre: Artmed, 2013.
  • FU, Y., ALENEZI, T., SUN, X. Clostridium perfringens-induced necrotic diseases: an overview. Immuno, v. 2, n. 2, p. 387-407, 2022. 
  • GRENDA, T., GRABCZAK, M., KWIATEK, K., BOBER, A. Prevalence of C. Botulinum and C. Perfringens spores in food products available on Polish market. Journal of Veterinary Research, v. 61, n. 3, p. 287-291, 2017.
  • MAIKANOV, B., MUSTAFINA. R., AUTELEYEVA, L., WIŚNIEWSK,I J., ANUSZ, K., GRENDA, T., KWIATEK, K., GOLDSZTEJN, M., GRABCZAK, M. Clostridium botulinum and Clostridium perfringens occurrence in kazakh honey samples. Toxins, v. 13, n. 8: 472, 2019.
Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia mais