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Consumidores e uma visão ampla da Qualidade: uma reflexão

Thaíse Gomes descreve sobre mudanças que os produtores de alimentos tiveram que se adaptar ao longo do tempo, para atender às demandas de consumidores cada vez mais exigentes.

A qualidade possui característica ampla e tem diversos conceitos 1. Inicialmente, no âmbito industrial, o foco era atender as expectativas do cliente ou consumidor ofertando um produto de qualidade2. Consequentemente, isso gerou maior competitividade no mercado dos alimentos. Quanto maior o atendimento às expectativas do cliente, maior o destaque da empresa no mercado3.

Em meados dos anos 90, as indústrias alimentícias começaram a investir, cada vez mais, em processos automatizados para produção e processamento dos alimentos para se destacarem no mercado3. Isso influenciou positivamente na economia. À medida que os processos eram acelerados, a entrega do produto era rápida e facilitada, gerando maior lucratividade4.

Ainda na década de 1990, as indústrias focavam em produtos com durabilidade, associando a qualidade a essas questões4. O foco era atender as necessidades dos consumidores com a entrega de produtos isentos de defeitos e irregularidades5.

A característica, ou conceito, da qualidade começou a mudar quando, paralelamente a esse período, começaram a aparecer casos de contaminação nos alimentos. Estes amplamente divulgados pela mídia, contribuindo para o surgimento de um novo perfil de qualidade para o mercado dos alimentos. Dentre os casos de contaminação nos alimentos, destaca-se o caso dos hambúrgueres contaminados pela bactéria E. Coli O157:H7 nos Estados Unidos, os produtos cárneos contaminados com a Listeria monocytogenes, também nos Estados Unidos; o caso da doença da “vaca louca” confirmada tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá; o uso ilegal e excessivo de antibióticos na produção de frango, suínos e bovinos; e a contaminação de carne por dioxina, na Europa 6; a epidemia de cólera pela contaminação de frutos do mar e da água, no Peru, estendendo-se nas Américas desenvolvendo milhares de casos e quatro mil mortes em vários países 7. E no Brasil, casos como gripe aviária, gripe suína, carne contaminada por radiação, surtos por peste suína, entre outros8.

Em resposta a essas situações, os consumidores começaram a ficar desconfiados e inseguros no momento da aquisição e consumo de alimentos. Como consequência, instituiu-se o campo de atividades denominado controle de qualidade industrial 5. Esse controle consistia na utilização de sistemas e ferramentas de garantia de qualidade voltadas para garantia da segurança dos alimentos 4. O foco já não era a necessidade do consumidor/ cliente, e o atendimento de suas necessidades com a oferta de produtos isentos de defeitos, por exemplo, e sim garantir oferta e entrega de um alimento seguro.

Em suma, o objetivo desse controle envolvia sistemas e ferramentas eficientes para produção, manipulação e distribuição de alimentos seguros. Ou seja, objetivava-se assegurar a qualidade higiênico-sanitária dos alimentos através da eficácia e efetividade de procedimentos de inspeção e investigação, bem como de critérios de segurança dos alimentos, como: higiene ambiental, pessoal e dos alimentos; manipulação dos alimentos no momento do recebimento, armazenamento, pré-preparo e preparo dos alimentos; e distribuição 8. Os sistemas e ferramentas do controle de qualidade consistiam nas normas da série International Organization for Standardization (ISO) com publicações e atualizações desde a década de 90, voltadas à segurança dos alimentos, e as Boas Práticas (BP) ou Boas Práticas de Fabricação (BPF), sendo importantes ferramentas até hoje frente ao âmbito alimentar industrial 9.

Essas ferramentas já vinham sendo estudadas há muitos anos, mas somente na década de 1990 começaram a ser amplamente utilizadas. Algumas Portarias começaram a ser publicadas orientando que o mercado de alimentos assegurasse a produção e entrega de alimentos seguros aos consumidores. Como é o caso da Portaria nº 1.428, do Ministério da Saúde – MS 10, a qual disponibiliza um roteiro de inspeção sanitária de alimentos e orienta a adoção da manipulação segura de alimentos e aplicação do método Análise de Perigos e Pontos Críticos para Alimentos (APPCC) em todas as indústrias de alimentos brasileiras. E. a Portaria nº 46 de 1998 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a qual define como obrigatório a implantação gradativa do APPCC em indústrias de produtos de origem animal sob o regime do Serviço de Inspeção Federal (SIF).

Estas Portarias marcaram a década de 1990. Tanto serviços de alimentação quanto indústrias de alimentos eram obrigados a implantar as ferramentas de controle de qualidade higiênico-sanitário para atender às Portarias. Do mesmo modo, esses estabelecimentos se baseavam no Codex Alimentarius da década de 1990 11, que já disponibilizava um fórum internacional com coleção de documentos sobre padrões dos alimentos, visando a proteção e saúde dos consumidores, e as práticas justas de comércio de alimentos 12. Vale ressaltar que o Codex Alimentarius não consiste em uma ferramenta de controle de qualidade, mas uma referência às ferramentas e normas para garantia de um alimento seguro 9.

É notável que a utilização dessas ferramentas, bem como a elaboração de importantes legislações que abordavam o controle da qualidade higiênico-sanitário, ocorreu em resposta à demanda de mercado quanto à exigência de um alimento seguro por parte do consumidor. Isso se mostra relevantes quando ficou claro quando em 1996 foram emitidos 900 certificados da ISO 9000 em empresas de alimentos, bebidas e fumo, pelo Comitê Brasileiro de Qualidade (CB-025 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT) 4.

O que se observa é que, atualmente, a qualidade vem sendo fundamentada por diversos aspectos, não somente pelas características da qualidade higiênico-sanitária do alimento (alimento seguro, alimento isento de perigos químicos, físicos e biológicos, por exemplo). Os consumidores, bem como a sociedade, estão cada vez mais motivados a adquirir também alimentos saudáveis, com “valor” nutricional superiores aos demais, e livre de agrotóxicos, buscando o consumo de alimentos orgânicos, por exemplo 13. Essa motivação caracteriza uma mudança comportamental dos consumidores, propiciando diversas alterações no setor alimentício, especificamente na produção do alimento.

Entre as alterações do setor alimentício, especialmente, nota-se uma transição de qualidade associada ao alimento demonstrada por um novo perfil de mercado em ascensão: o mercado dos alimentos orgânicos. Já é notável que os produtos naturais e orgânicos vêm sendo uma tendência alimentar no âmbito mundial 14. Essa demanda de alimentos que proporciona bem-estar e saúde é decorrente, possivelmente e novamente, a um perfil de desconfiança dos consumidores e da sociedade.

Frequentemente os veículos de informação ao consumidor têm noticiado questões em que a utilização de agrotóxicos, por exemplo, desenvolve doenças e agravos para as pessoas e impacta negativamente no ecossistema15. Tudo indica que a ocorrência de situações e escândalos de contaminação de alimento por produto químico específico, ou pelo uso excessivo de agrotóxicos nos alimentos, influenciou nesse novo perfil de desconfiança dos consumidores sobre os alimentos. Isso faz com que optem por adquirir alimentos tanto livres de risco de contaminação alimentar biológica e física, quanto química, envolvendo também os pesticidas, agrotóxicos e transgênicos.

É sabido que o uso de transgênicos, bem como a biotecnologia e a engenharia genética promoveram significativas transformações no âmbito agroindustrial 16. Esses métodos começaram a ser utilizados para auxiliar a produção de produtos agrícolas resultando no aumento do rendimento e produtividade dos alimentos, maior resistência às pragas e doenças ambientais, melhor adaptabilidade ao clima, domesticação de novas espécies, inclusive o aperfeiçoamento da qualidade no âmbito agroindustrial 17. Entretanto, mesmo com uma melhora da rentabilidade desse estilo de produção, também há uma série de agravos à saúde humana e ao meio ambiente.

Em 2001 já era sabido da resistência de antibióticos, alergias, entre outros agravos à saúde desencadeados por alimentos contendo transgênicos 16. Em 2017, autores ressaltaram que a produção de organismos geneticamente modificados (OGM) afeta, também, a perda da biodiversidade18, além de doenças e agravos à saúde.

Em 2005 também já era relatado, em diversos estudos, que as doenças e agravos à saúde também ocorriam em decorrência ao uso de agrotóxicos19. Destaca-se a associação do uso de agrotóxico com suicídio15 e câncer, não somente pelo consumo, como também pela exposição crônica aos agrotóxicos20. Sabe-se que a utilização de produtos químicos vem aumentando há muitos anos de forma significativa, desencadeando agravos à saúde humana e ao meio ambiente 14.

Diante do exposto, o que se observa é que a qualidade na alimentação percorreu o caminho da satisfação do consumidor referente às suas necessidades, desenvolvendo-se para a qualidade higiênico-sanitária, forçando a indústria alimentícia a garantir a oferta de alimentos seguros por meio do controle de qualidade adotado pelas essas empresas. Em seguida, outros aspectos começaram a fazer parte dos atributos de qualidade.

No entanto, acredita-se que sejam necessários o atendimento e a compreensão de todos os envolvidos na cadeia produtiva de alimentos sobre a constante evolução do conceito de qualidade. O conceito para qualidade permanece amplo e possui forte influência dos consumidores e da sociedade. Tudo indica que alimentos de qualidade consistem em aspectos que englobam tanto a segurança de alimentos, o valor nutricional, o impacto ao meio ambiente, até mesmo características simbólicas e culturais do alimento.

O envolvimento e a compreensão desse conceito amplo de qualidade, influenciado pelos consumidores, não se trata apenas daqueles que lidam diretamente com a produção dos alimentos propriamente dita. Trata-se, também, de gestores e consultores que trabalham no ramo, dentro desse contexto. Faz-se necessária a compreensão das legislações relacionadas à outras dimensões da qualidade, como a qualidade do alimento no âmbito nutricional, relacionado à aspectos nutricionais dos alimentos, como também a qualidade no âmbito cultural, atendendo aspectos culturais de determinada população e/ou da região do alimento associando a qualidade higiênico-sanitária. Além disso, faz-se necessário, também, o atendimento da dimensão de sustentabilidade do alimento. Para então, profissionais, como gestores e consultores, conseguirem orientar melhor o produtor/distribuidor, por exemplo. Quanto mais a cadeia produtiva de alimentos englobar esses diversos aspectos, essa característica ampla, possivelmente será percebida pelo mercado em que atuam.

 

Referências

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