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Alergenicidade de leite A2A2 e de leite de outras espécies

Intolerância e alergia: entendendo a diferença

O leite faz parte da alimentação humana desde o nascimento. Ele é um alimento de elevada densidade nutricional, que se destaca como principal fonte de cálcio na alimentação, demonstra alta disponibilidade, além de possuir proteínas de elevado valor biológico e excelente digestibilidade e biodisponibilidade. Além disso, o leite possui outros minerais, vitaminas (com destaque para a A e as do complexo B), lipídeos e a lactose. Diversos desses componentes com propriedades funcionais podem contribuir com a saúde, como, por exemplo, auxiliando na redução de doenças crônicas e no processo de formação e crescimento da estrutura óssea e dentária.

Por ser uma fonte tão relevante de nutrientes é que a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN) e a Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN) recomendam (quando não houver contraindicação de um profissional de saúde) o consumo de leite materno de forma exclusiva até o sexto mês de vida, e a inserção de leite de outras espécies de forma complementada ao materno até dois anos de idade. Também recomendam o seu consumo, a partir de um ano de idade, quando houver a impossibilidade do aleitamento materno e, ao longo de toda a vida.

Entretanto, adultos e crianças podem apresentar complicações de saúde com o consumo de leite, as quais podem ser temporárias ou permanentes. Essas complicações podem ser causadas pela alergia à proteína do leite de vaca (APLV) ou pela intolerância à lactose (IL). 

As alergias alimentares são reações adversas mediadas por mecanismos imunológicos específicos, que ocorrem em indivíduos após o consumo ou contato com determinado alimento. Dentre as alergias, a mais comum é a APLV, que acomete principalmente crianças, em especial até os 12 meses de idade e, as que não foram amamentadas exclusivamente até os seis meses. A persistência da APLV em indivíduos adultos é incomum. A APLV está relacionada a uma resposta imune à uma ou mais proteínas do leite, principalmente à caseína e às proteínas do soro do leite (α-lactoalbumina e β-lactoglobulina), fazendo com que o sistema imunológico reconheça essas proteínas como antígenos, ativando a cascata imunológica e levando a um processo de hipersensibilização, que libera anticorpos, citocinas e histaminas. A maior parte das pessoas que têm APLV é alérgica a mais de uma proteína.

Os sintomas dependem dos mecanismos imunológicos envolvidos na APLV (mediados por IgE, não-mediados por IgE ou mistos), sendo que os mediados por IgE podem desencadear eczema atópico, rinite alérgica ou asma, e os que não são, se relacionam a sintomas gastrointestinais como náuseas, vômito, diarreia, dores abdominais e refluxo gástrico. Sintomas mistos podem ser observados quando a alergia é decorrente de mecanismos mediados por IgE, com participação de linfócitos T, eosinófilos e citocinas pró-inflamatórias. A maior parte dos casos de APLV mediada por IgE pode cessar até a idade de 3 a 4 anos.

Já a intolerância à lactose (IL) é um distúrbio digestivo relacionado a incapacidade total ou parcial do organismo em digerir a lactose através da enzima lactase. A ausência ou a redução da presença da lactase impossibilita a completa hidrólise deste carboidrato. Assim, a lactose ingerida que não é metabolizada segue o trânsito intestinal e, no intestino grosso, poderá ser utilizada pela microbiota colônica, e ao ser fermentada será convertida em gases e ácidos, aumentando a concentração de água no intestino. Portanto, indíviduos intolerantes podem apresentar um ou mais sintomas como distensão, dor e cólica abdominais, assaduras, náusea, borborigmo, flatos, câimbras, diarreia e, às vezes constipação intestinal, que podem variar de acordo com o tipo de deficiência da enzima e também da quantidade de lactose ingerida. 

No entanto, a IL pode não acometer da mesma forma diferentes indivíduos, pois existem diferentes tipos de deficiência de lactase. A deficiência primária pode ser a alactasia e ou a hipolactasia do adulto. A alactasia é um raro distúrbio autossômico recessivo associado à ausência de expressão de lactase em recém-nascidos. Já a hipolactasia do adulto resulta do declínio progressivo na atividade da lactase entre a infância e a idade adulta. A deficiência secundária é desencadeada por uma doença ou lesão no intestino delgado, podendo ser transitória no caso de parasitoses, gastroenterites, rotavírus, ou permanente nos casos de doenças como a celíaca, de Crohn e colite ulcerativa.

Erroneamente, a APLV e a IL podem ser confundidas ou entendidas como sinônimos, por estarem relacionadas à ingestão do leite. O diagnóstico precoce da APLV ou IL é importante para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos acometidos, uma vez que a privação do consumo de lácteos pode interferir na saúde e nos hábitos alimentares. Evitar laticínios pode levar a deficiências de nutrientes essenciais e, por isso, pode se tornar um problema de saúde pública segundo o National Institutes of Health, um dos principais pólos de pesquisa em saúde do mundo.

A SBAN e a ABRAN esclarecem que os indivíduos intolerantes à lactose, dependendo do grau de acometimento (leve, moderado ou grave) podem consumir leite dentro da quantidade que se sentir confortável. Isto porque a intolerância à lactose é dose dependente, ou seja, o indivíduo pode tolerar certas quantidades do carboidrato. Por isso, é recomendado que cada indivíduo descubra a quantidade de lactose que não ocasiona manifestação clínica. Além disso, sob recomendação profissional, certos intolerantes podem optar por leite sem lactose ou ainda, podem utilizar a enzima lactase via oral no momento da ingestão de leite. Já para indivíduos com APLV, podem ser indicadas fórmulas à base de proteína extensamente hidrolisada com ou sem lactose e à base de aminoácidos, para substituir a alimentação de crianças menores de seis meses ou para a complementação para as crianças maiores de seis meses.

Logo, é importante saber diferenciar as duas condições, para que haja o diagnóstico e um tratamento adequados (Figura 1).

Figura 1: Diferenças entre alergia e intolerância ao leite.

Fonte: Autores.

O leite de vaca do tipo A2A2 é menos alergênico?  

O leite de vaca apresenta em sua composição proteínas que são classificadas em dois grupos, compostos de diferentes frações: caseínas (α-s1, α-s2, β-caseína, kappa e gama) e proteínas do soro (α-lactobumina, β-lactoglobulina, albumina sérica, lactoferrina e imunoglobulinas). A concentração média dos grupos e de suas frações pode variar devido a fatores genéticos e ambientais.

Especificamente a fração β-caseína, que constitui aproximadamente 30% do total da proteína do leite, pode ser encontrada na forma de 12 variações genéticas de acordo com a composição genética do animal, sendo A1, A2, A3, B, C, D, E, F, H1, H2, I e G. Dessas, as formas A1 e A2 se destacam pela ocorrência. 

Todas as fêmeas de espécies mamíferas produzem apenas a β-caseína A2. Entretanto, as vacas passaram a produzir também a fração A1 a partir de uma mutação genética que ocorreu há aproximadamente 10 mil anos e, assim, passaram a produzir a β-caseína A1. Portanto, nem todas as vacas produzem os dois tipos de caseína. Existem três genótipos possíveis, o A1A1 que determina a produção apenas da fração A1, A2A2 somente a A2, e o A1A2 em que os animais produzem os dois tipos A1 e A2.

O leite convencional possui tanto as frações A1 como A2, diferente do leite A2 que contém apenas a β-caseína A2. Para se produzir o leite A2 realiza-se a genotipagem dos animais a fim de conhecer o perfil genético dos mesmos no rebanho. O gene que leva à produção da β-caseína pode se combinar formando animais homozigotos (A1A1 ou A2A2) ou heterozigotos (A1A2)  (Figura 2). As fazendas que já realizaram esse trabalho de genotipagem de seus animais, podem ser certificadas e produzir leite de vacas A2 no Brasil, que já se encontra disponível para comercialização.

Figura 2: Relação do genótipo do animal e do tipo de leite produzido.

Fonte: Autores.

Ambas as frações de β-caseína são constituídas de 209 aminoácidos, sendo que a diferença entre elas é apenas o aminoácido presente na posição 67, que na fração A1 é a histidina e na fração A2 é a prolina. Devido a esse polimorfismo, ocorrem alterações nos padrões de digestão. No processo de digestão da fração A1, ocorre a hidrólise da ligação peptídica entre os aminoácidos 66 e 67, gerando um peptídeo denominado β-casomorfina-7 (BCM-7). No entanto, a presença da prolina na fração A2 inibe a hidrólise da ligação citada, evitando a formação do peptídeo.

Estudos sobre o BCM-7 têm sugerido que ele pode ser considerado um antígeno que desencadeia reações no sistema imunológico humano, influenciando a atividade gastrointestinal, ocasionando efeitos como a redução da motilidade intestinal, inibição da secreção gástrica e aumento da contração da vesícula biliar, resultando em processos inflamatórios intestinais. Como na digestão da fração de β-caseína A2 há inibição na formação do BCM-7, o leite A2A2 pode ser entendido como melhor sob este aspecto, pois é constatada que na sua digestão há formação do peptídeo, mas em concentrações muito baixas.

 É importante ressaltar que o leite A2 não é recomendado para os indivíduos que possuam alergia às proteínas do leite, pois neste caso somente se adequaria aos que possuem especificamente alergia à β-caseína A1. Por isso, a inclusão de leite na alimentação de indivíduos alérgicos deve sempre ser orientada por profissional competente.

Leites de outras espécies e alergenicidade

Quando o assunto é APLV e quais as alternativas para consumo de leite por pessoas alérgicas, são comuns as sugestões sobre a substituição do leite de vaca pelo leite de outras espécies, por serem menos alergênicos.

Embora os leites oriundos de diferentes mamíferos possuam em comum os grandes grupos de nutrientes (água, carboidrato, lipídeos, proteínas, vitaminas e minerais), variações nas frações que constituem estes grupos ou mesmo em suas concentrações podem ocorrer. Uma das possíveis variações entre as espécies pode ser justamente em relação às proteínas, uma vez que os leites de búfala, cabra e ovelha, possuem diferenças em relação a presença/teor das proteínas e de suas frações.

Considerando-se as frações de proteínas alergênicas como β-lactoglobulina e a α-lactoalbumina, os leites destas espécies não são considerados alergênicos para adultos, mas sim para crianças. Outras frações alergênicas como a caseína α-s1 e β-caseína A1, estão em menor concentração ou ausentes, respectivamente, nestes leites. Portanto, por isso os leites de búfala, cabra e ovelha são considerados naturalmente hipoalergênicos para alguns indivíduos.

No entanto, é importante destacar que, embora se observe que leites de algumas espécies possuem menos frações alergênicas comparados ao leite de vaca, os indivíduos alérgicos devem igualmente excluir estes leites da alimentação e procurar orientação para diagnóstico e sobre o consumo de leite. 

Considerações Finais

É importante ressaltar que não é recomendada a exclusão de leite e derivados da alimentação sem orientação do profissional da área. Caso o indivíduo não se sinta bem após consumir leite, o primeiro passo é buscar ajuda médica e nutricional para realizar o diagnóstico adequado. Caso seja diagnosticada a intolerância ou a alergia, o profissional competente fará o acompanhamento e as recomendações necessárias, pois estas variam de indivíduo para indivíduo.

 

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