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GLÚTEN: Um conjunto de proteínas mal compreendidas

A relação social e econômica do consumo de trigo é um desafio nada fácil de ser enfrentado.

A estrutura do glúten. Legenda: (A) Representação esquemática da estrutura do glúten com destaque para as proteínas que o compõem. (B) Microscopia eletrônica de varredura do glúten. Estrutura formada pela gliadina (cabeça de seta) e glutenina (seta). Fonte: adaptado de Fasano et al. 2008.

Uma porção considerável da proteína do grão de trigo, popularmente conhecida como glúten, compõe cerca de 85% a 95% do seu total de proteínas. Este complexo de proteínas denominadas glutenina e gliadina são frequentemente consideradas vilãs do processo inflamatório, por causa de reações já bem compreendidas do mecanismo de resposta a macromoléculas mal digeridas e metabolizadas.

Ocorre que, a maior parte destas reações está relacionada à fração N terminal da cadeia de peptídeos de gliadina, especificamente da α-gliadina, que possui conjugação em sequência dos aminoácidos glutamina-prolina, que correlacionadas como as mais imunogênicas, e envolvidas nas reações de hipersensibilidade, alergia e com alto grau de influência na patogênese da doença celíaca.

A ampla divulgação do envolvimento do glúten e a sua relação com a inflamação é pauta de diversos estudos científicos, e o interesse pelo assunto evolui à medida que o consumo do grão de trigo aumenta na população brasileira. A Sindustrigo (2013) revela que o trigo produzido atualmente possui 20 vezes mais glúten que há 40 anos, e que neste intervalo, seu consumo saltou de 30 para 60 quilos por ano entre os brasileiros. Este detalhe fenotípico pode justificar a crescente sensibilidade à proteína do glúten, que indiscutivelmente se mantém entre os alérgenos potencialmente prevalentes, com gravidade e potência de hipersensibilidade.

Outro dado que colabora com a correlação de consumo excessivo de proteínas consideradas alergênicas e aumento da população alérgica se dá pelo crescimento de diagnósticos de alergias no mundo. A Organização Mundial de Saúde estima que este número aumente para 400 milhões em 2025. Porém, esta correlação de consumo versus probabilidade de desenvolvimento de alergias é controversa e tem sido discutida por diversos autores.

Dubois et al. (2020), alerta para a falta de evidências sobre a relação entre a dose (quantidade) do alérgeno ingerido e a gravidade da reação, mas admite que a quantidade pode ser um fator de segurança para o grau de severidade dos sintomas.

Sendo assim, a melhor forma de prevenção das enteropatias associadas ao consumo de glúten seria o não consumo do mesmo (FAO, 2021). Para tanto o trigo poderia ser substituído por outros cereais que não possuem prolaminas, ou possuem em menor quantidade; esse é o caso do arroz, milho, sorgo e milheto. A aveia, embora não possua a porção prolamina em grande percentual, poderia ser considerada inofensiva para indivíduos sensíveis ao complexo glúten (FAO, 2021).  No entanto, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2020), seus cultivos são frequentemente realizados em concomitância com lavouras de trigo, cevada e centeio, tanto no Brasil quanto na Europa. Sendo assim, não pode ser considerada uma alternativa segura como um cereal livre de glúten. 

Além disso, a relação social e econômica do consumo de trigo é um desafio nada fácil de ser enfrentado. O cereal se destaca como o segundo mais produzido no mundo, mantendo-se atrás somente da cultura de milho.Com uma safra cada vez maior, atingiu em 2020 o volume de 764,3 milhões de toneladas em todo o mundo, com crescimento projetado em 93 milhões até 2028 (IPEA, 2020). 

Suas características reológicas são condicionadas à sua estrutura proteica, que é um importante fator para a variedade de produtos derivados deste grão (BIESIEKIERSKI, 2017); entre elas, as suas propriedades viscoelásticas, que são bastante exploradas pela indústria, desde a produção de produtos conhecidos e comuns na dieta, à ingrediente oculto consideravelmente utilizado na composição de uma variedade de alimentos processados.

A legislação brasileira, para evitar o consumo inadvertido de glúten, considera desde 2003, a partir da Lei nº. 10.674, a obrigatoriedade da informação sobre a presença de glúten, em produtos alimentícios comercializados, considerando que a tolerância para celíacos, que são os indivíduos mais acometidos imunologicamente, é de até 20 ppm de glúten nos alimentos.

Compreender o mecanismo e a importância do cereal, que é um nutriente básico na alimentação humana, nos fornece a clareza para discernir que, embora parte de sua proteína seja consideravelmente nociva, é ótima fonte de carboidratos, proteínas e fibras, minerais como fósforo, cobre e manganês, e vitaminas, como E e Tiamina.

É relevante destacar que outras estratégias para que o trigo, assim como o glúten, possa ser consumido de modo a não causar reações adversas parece ser mais palpável e benéfica para indivíduos sensíveis, e a exclusão do glúten essencial até o momento, somente  para o tratamento da doença celíaca e indivíduos alérgicos. 

Dentre as estratégias relevantes e em desdobramento científico, observamos o avanço da imunoterapia, a utilização de bactérias precursoras de proteólise do glúten associadas a alimentos e a produção de trigo transgênico.

Embora a produção e plantio de trigo transgênico pareça ser alternativa de menor impacto ao padrão de consumo, sua utilização enfrenta conceitos éticos ainda pouco esclarecidos e preconceito por parte da maioria da população, o que torna mais forte a expectativa pela imunoterapia e a utilização de bactérias lácticas, como alternativas seguras.

Em fase mais avançada, Di Sabatino et al. (2018) descreve o desenvolvimento da vacina Nexvax2, em experimento de fase clínica I, como uma alternativa para restaurar a tolerância fisiológica das células T a estes epítopos imunogênicos específicos, evitando o desencadear da cascata inflamatória imunológica específica ao glúten.

E ainda mais promissora e de menor custo para aplicação, a associação  de alimentos com um consórcio de bactérias lácticas, que são reconhecidamente precursoras da proteólise do glúten, demonstra ser uma terapia de característica probiótica com atuação direta no intestino, capaz de fomentar uma colonização positiva e futuro domínio da microbiota intestinal atuante na degradação in loco do glúten, de forma a reduzir seu potencial alergênico pela produção de enzimas no lúmen intestinal para que hidrolisem essa proteína em porções menores e atóxicas.

 

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Ministério da Economia. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Produção de trigo no brasil: indicadores regionais e políticas públicas. Brasília. 2020.
  • BRZOZOWSKI, B.; STASIEWICZ, K.; OSTOLSKI, M. & ADAMCZAK, M. Reducing Immunoreactivity of Gliadins and Coeliac-Toxic Peptides Using Peptidases from L. acidophilus 5e2 and A. niger. Catalysts, v. 10, n. 8, p. 923, 2020. Disponível em:<https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/wrr.12607>. Acesso em: 14 out. 2022.
  • BIESIEKIERSKI, J.R. What is gluten? Journal of Gastroenterology and Hepatology 2. V.32, p. 78-81, 2017. 
  • BRASIL. Lei 10.574 de 16 de maio de 2003.  Obriga que os produtos alimentícios comercializados informem sobre a presença de glúten, como medida preventiva e de controle da doença celíaca. Brasília.  
  • Consumo de trigo mais que dobrou nos últimos 40 anos. SINDUSTRIGO, São Paulo, 2013. 
  • DI SABATINO, A.; LENTI, M. V.; CORAZZA, G. R.; GIANFRANI, C. Vaccine Immunotherapy for Celiac Disease. Frontiers in Medicine, v. 5, P. 187,  2018. 
  • DUBOIS, A.E.J.; TURNER, P.J.; HOURIHANE, J.; BALLMER-WEBER, B.; BEYER, K.; CHAN, C.-H.; GOWLAND, M.H. et al. How does dose impact on the severity of food-induced allergic reactions, and can this improve risk assessment for allergenic foods?: Report from an ILSI Europe Food Allergy Task Force Expert Group and Workshop. Allergy, v.73, n.7, p.1383–1392., 2020. 
  • FAO/WORLD HEALTH ORGANIZATION. Summary report of the Ad hoc Joint Expert Consultation on Risk Assessment of Food Allergens. Part 1: Review and validation of Codex Priority allergen list through risk assessment. Virtual meeting:  30 November – 11 December 2020, 28 January 2021, 8 February 2021. 
  • FASANO, A., ARAYA, M., BHATNAGAR, S., CAMERON, D., CATASSI, C., DIRKS, M., MEARIN, M.L., ORTIGOSA, L., PHILLIPS, A., Federation of International Societies of Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition: Consensus Report on Celiac Disease. Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. v. 47, n. 2, p. 214-219, 2008. 
  • WIESER, H. Chemistry of gluten proteins. Food microbiology, v. 24, n. 2, p. 115–9, 2007. 
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